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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 96 - 104, out. - dez. 2013
a história da humanidade confirme sua materialidade. A experiência de
uso ilícito é identificada à dependência, e a dependência só é investida
de poder quando controlada pela escuta do especialista. A internação
compulsória de usuários de crack que vivem nas ruas de nossas cidades,
decidida pela política proibicionista, não seria uma tentativa de aprisionar
seus discursos, de reduzir um sofrimento que vai além da droga em si,
calando situações de miséria?
A oposição entre o falso e o verdadeiro completa o quadro de pro-
cedimentos externos à construção do discurso sobre as drogas, funda-
mental no controle do que é aceito como ‘verdade’. Se nos colocamos
no interior do discurso repressivo que impõe a abstinência como norma,
essa partilha não parece arbitrária ou violenta – afinal, a pretensão de um
mundo ‘sem drogas’ é apresentada de forma natural... Mas se queremos
saber sobre a história do consumo de drogas ao longo de tantos sécu-
los, percebemos sistemas de exclusão, modificáveis e institucionalmente
constrangedores. O discurso da abstinência continua sendo valorizado,
distribuído e atribuído pelas instituições como ‘o verdadeiro’, em que pe-
sem os inúmeros estudos que têm confirmado ontem e hoje a evidência
de usos controlados. A ação das drogas no sistema nervoso central se im-
põe como determinante em qualquer uso, assim transformado em de-
pendência ‘química’, independentemente da personalidade dos sujeitos e
de seu meio sociocultural. As experiências antigas e recentes de uso sem
danos ficam obscurecidas.
Pareceres dados por profissionais de saúde, nos processos de ava-
liação dos adolescentes pobres em conflito com a lei, evidenciam a opção
pelo discurso institucional e reproduzem preconceitos
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e a dificuldade
de construção de um discurso próprio. O olhar altaneiro do adolescente
pobre, preso em decorrência do uso de drogas é visto de forma negativa
pelo profissional que o avalia. Exige-se dele olhos baixos, submissos. Seus
desejos de consumo – comprar uma casa para a família no futuro - são
considerados incompatíveis com sua situação econômica, a modéstia sen-
do exigência
necessária
a sua condição de pobreza. Por outro lado, de um
adolescente de classe média ou alta espera-se justamente o olhar direto,
firme, que demonstra segurança. A circulação do jovem pobre longe do
17 MALAGUTI BATISTA, V. 1998.
Difíceis ganhos fáceis, drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro
, Instituto Cario-
ca de Criminologia/ICC, Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro.