Revista da EMERJ (Edição Especial) nº 63 - page 113

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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 110 - 114, out. - dez. 2013
uma visão sanitária que regeu até 1964 para uma visão bélica que aporta
ao Brasil no marco da ditadura civil-militar.
O paradigma bélico entra na política criminal de drogas, e Zaffaroni
a ela se refere como o fenômeno da multiplicação dos verbos, cada ano
um novo verbo típico vai sendo acrescentado (plantar, guardar, emprestar
etc.). Este milagre da multiplicação de verbos vai produzindo uma expan-
são da punitividade de uma forma (como é da natureza seletiva do siste-
ma penal) que acaba incidindo sobre os nossos velhos e eternos clientes
do extermínio.
A droga se converte então no grande eixo moral, religioso, político
e ético para reconstrução e atualização de nosso inimigo interno. No livro
de Zaffaroni
O Inimigo no Direito Penal
, são mostradas as marcas dessa
guerra no direito penal e no processo penal, essa reconstrução do inimigo
interno que produziu uma inculcação da ideologia do extermínio e sua
atualização depois da ditadura militar. Nós perdemos a mordida crítica da
truculência do Estado que tínhamos na saída da ditadura, e hoje somos
piores porque aplaudimos os massacres nas favelas: o torturador é um
grande herói, a tortura virou um espetáculo. Tem uma reflexão do Darcy
Ribeiro que diz o seguinte: “Nenhum povo que passasse por isso como
sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado inde-
levelmente. Todos nós brasileiros somos carne da carne daqueles pretos
e índios supliciados” (
Aldeia Maracanã
é um espetáculo familiar pra nós).
“Todos nós brasileiros somos por igual a mão possessa que os supliciou.
Descendentes de escravos e senhores de escravos, seremos sempre ser-
vos da malignidade destilada e instalada em nós tanto pelo sentimento
da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício
da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas
em pastos de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de
levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a
explodir na brutalidade racista e classista. Ela é quem incandesce, até hoje,
em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, a viciar, a machucar
os pobres que lhes caem às mãos.” Esse é um texto de Darcy de 1994,
um pouco antes de ele morrer. Então, existe essa categoria do “matável”
na realidade brasileira: a política criminal de drogas é só uma atualização
plástica para o prosseguimento dessa eterna chacina, desse eterno geno-
cídio. Rosa Del Olmo nos revela que quando a política americana, fundada
por Richard Nixon, de guerra às drogas começou, ela produziu também
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