Background Image
Previous Page  316 / 432 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 316 / 432 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 79, p. 309 - 347, Maio/Agosto 2017

316

2.2. A Desqualificação da Razão Prática

É com David Hume, no entanto, que os limites do conhecimento são

colocados no seu devido lugar. Além de introduzir a noção de probabilida-

de

26

no uso da razão teórica, permitindo uma constante reelaboração dos

seus conceitos, o ceticismo de seus postulados instaurou uma desconfiança

permanente do potencial racional da filosofia prática. Isso porque, “embora

a

razão

, quando plenamente assistida e desenvolvida, seja suficiente para

nos fazer reconhecer a tendência útil ou nociva de qualidades e ações, ela

sozinha não basta para produzir qualquer censura ou aprovação moral. (...)

É preciso que um

sentimento

venha a se manifestar aqui, para estabelecer a

preferência pelas tendências úteis sobre as nocivas.”

27

Explica-se com um exemplo: embora Euclides tenha explicado

completamente todas as propriedades do círculo, nenhuma proposição

poderia dizer sequer uma palavra sobre sua utilidade ou beleza. O moti-

vo é evidente: a utilidade ou beleza não são propriedades do círculo, não

residem em nenhuma parte da linha cujas partes são equidistantes de um

centro comum, mas são apenas os efeitos que essa figura produz sobre a

mente humana. Em vão a procuraríamos no círculo, ou a buscaríamos,

por meio dos sentidos ou do raciocínio matemático, em qualquer das

propriedades dessa figura.

28

Do mesmo modo, parece evidente que os fins últimos das ações hu-

manas não podem ser explicados pela razão. Por mais que possamos arrolar

todos os argumentos “racionais” para que uma conduta seja desempenhada

de uma maneira específica, haverá sempre um resíduo irracional a orientar a

mesma, muitas vezes em sentido contrário ao postulado racional. Em última

análise, as ações humanas são guiadas, senão inteiramente, em sua maior

parte, pelos puros sentimentos, sem qualquer dependência das faculdades

intelectuais.

29

O fator chave para a prática não são os fundamentos lógicos,

26 A noção de probabilidade foi introduzida de sorte a demonstrar os limites da própria razão teórica. É que, como sem-

pre ignoramos

todas

as causas potenciais de determinado fenômeno, apenas podemos, diante das causas conhecidas,

indicar

uma probabilidade

da ocorrência do fato. Toda

causalidade

é sempre uma causalidade

provável

. HUME, David

. Investigações

sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral

. São Paulo: Unesp, 2004, p. 91.

27 HUME, David

. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral

. São Paulo:

Unesp, 2004, p. 368 e 369.

28 O exemplo é fornecido pelo próprio David Hume.

In

Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os

Princípios da Moral

. São Paulo: Unesp, 2004, p. 368 e 369.

29 HUME, David

. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral

. São Paulo:

Unesp, 2004, p. 377.