

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 79, p. 309 - 347, Maio/Agosto 2017
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2.2. A Desqualificação da Razão Prática
É com David Hume, no entanto, que os limites do conhecimento são
colocados no seu devido lugar. Além de introduzir a noção de probabilida-
de
26
no uso da razão teórica, permitindo uma constante reelaboração dos
seus conceitos, o ceticismo de seus postulados instaurou uma desconfiança
permanente do potencial racional da filosofia prática. Isso porque, “embora
a
razão
, quando plenamente assistida e desenvolvida, seja suficiente para
nos fazer reconhecer a tendência útil ou nociva de qualidades e ações, ela
sozinha não basta para produzir qualquer censura ou aprovação moral. (...)
É preciso que um
sentimento
venha a se manifestar aqui, para estabelecer a
preferência pelas tendências úteis sobre as nocivas.”
27
Explica-se com um exemplo: embora Euclides tenha explicado
completamente todas as propriedades do círculo, nenhuma proposição
poderia dizer sequer uma palavra sobre sua utilidade ou beleza. O moti-
vo é evidente: a utilidade ou beleza não são propriedades do círculo, não
residem em nenhuma parte da linha cujas partes são equidistantes de um
centro comum, mas são apenas os efeitos que essa figura produz sobre a
mente humana. Em vão a procuraríamos no círculo, ou a buscaríamos,
por meio dos sentidos ou do raciocínio matemático, em qualquer das
propriedades dessa figura.
28
Do mesmo modo, parece evidente que os fins últimos das ações hu-
manas não podem ser explicados pela razão. Por mais que possamos arrolar
todos os argumentos “racionais” para que uma conduta seja desempenhada
de uma maneira específica, haverá sempre um resíduo irracional a orientar a
mesma, muitas vezes em sentido contrário ao postulado racional. Em última
análise, as ações humanas são guiadas, senão inteiramente, em sua maior
parte, pelos puros sentimentos, sem qualquer dependência das faculdades
intelectuais.
29
O fator chave para a prática não são os fundamentos lógicos,
26 A noção de probabilidade foi introduzida de sorte a demonstrar os limites da própria razão teórica. É que, como sem-
pre ignoramos
todas
as causas potenciais de determinado fenômeno, apenas podemos, diante das causas conhecidas,
indicar
uma probabilidade
da ocorrência do fato. Toda
causalidade
é sempre uma causalidade
provável
. HUME, David
. Investigações
sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral
. São Paulo: Unesp, 2004, p. 91.
27 HUME, David
. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral
. São Paulo:
Unesp, 2004, p. 368 e 369.
28 O exemplo é fornecido pelo próprio David Hume.
In
Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os
Princípios da Moral
. São Paulo: Unesp, 2004, p. 368 e 369.
29 HUME, David
. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral
. São Paulo:
Unesp, 2004, p. 377.