

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 39 - 62, Janeiro/Abril 2018
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e funcionamento do constitucionalismo contemporâneo. Para utilizar um
lugar comum, parodiando Antonio Gramsci, vivemos um momento em que
o velho já morreu e novo ainda não nasceu
22
. A doutrina da dificuldade
contramajoritária, estudada anteriormente, assenta-se na premissa de que as
decisões dos órgãos eletivos, como o Congresso Nacional, seriam sempre
expressão da vontade majoritária. E que, ao revés, as decisões proferidas por
uma corte suprema, cujos membros não são eleitos, jamais seriam. Qualquer
estudo empírico desacreditaria as duas proposições.
Por numerosas razões, o Legislativo nem sempre expressa o sentimen-
to da maioria
23
. De fato, há muitas décadas, em todo o mundo democrático,
é recorrente o discurso acerca da crise dos parlamentos e das dificuldades da
representação política. Da Escandinávia às Américas, um misto de ceticismo,
indiferença e insatisfação assinala a relação da sociedade civil com a classe
política. Nos países em que o voto não é obrigatório, os índices de abstenção
revelam o desinteresse geral. Em países de voto obrigatório, um percentual
muito baixo de eleitores é capaz de se recordar em quem votou nas últimas
eleições parlamentares. Há problemas associados (i) a falhas do sistema elei-
toral e partidário, (ii) às minorias partidárias que funcionam como
veto
players
24
,
obstruindo o processamento da vontade da própria maioria par-
lamentar e (iii) à captura eventual por interesses especiais. A doutrina, que
antes se interessava pelo tema da dificuldade contramajoritária dos tribunais
constitucionais, começa a voltar atenção para o déficit democrático da re-
presentação política
25
.
Essa crise de legitimidade, representatividade e funcionalidade dos
parlamentos gerou, como primeira consequência, em diferentes partes do
22 Antonio Gramsci,
Cadernos do Cárcere
, 1926-1937. Disponível, na versão em espanhol, em
http://pt.scribd.com/doc/63460598/Gramsci-Antonio-Cuadernos-de-La-Carcel-Tomo-1-OCR:“A crise consiste precisamente no fato de que o
velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.
V. tb., entrevista do sociólogo Zigmunt Bauman, disponível em
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/24025-%60%60o-velho-mundo-esta-morrendo-mas-o-novo-ainda-nao-nasceu%60%60-entrevista-com-zigmunt-bauman.
23 Sobre o tema, v. Corinna Barret Lain, Upside-down judicial review,
The Georgetown Law Review 101:
113, 2012-2103. V. tb.
Michael J. Klarman,
The majoritarian judicial review: the entrenchment problem
,
The Georgetown Law Journal 85:
49, 1996-1997.
24
Veto players
são atores individuais ou coletivos com capacidade de parar o jogo ou impedir o avanço de uma agenda. Para
um estudo aprofundado do tema, v. George Tsebelis,
Veto players:
how political institutions work. Princeton, NJ: Princeton
Univesity Press, 2002. Em língua portuguesa, v. Pedro Abramovay,
Separação de Poderes e medidas provisórias
, 2012, p. 44 e s.
25 V.,
e.g.
, Mark A. Graber,
The countermajoritarian difficulty: from courts to Congress to constitutional order
,
Annual Review of Law
and Social Science 4:
361-62 (2008). Em meu texto
Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito:
o triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil,
Revista de Direito Administrativo 240:
1, 2005, p. 41, escrevi: “Cidadão é diferente de eleitor; governo
do povo não é governo do eleitorado. No geral, o processo político majoritário se move por interesses, ao passo que a
lógica democrática se inspira em valores. E, muitas vezes, só restará o Judiciário para preservá-los. O
deficit
democrático do
Judiciário, decorrente da dificuldade contramajoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição
pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa, o abuso do poder econômico,
a manipulação dos meios de comunicação”.