Background Image
Previous Page  43 / 308 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 43 / 308 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 39 - 62, Janeiro/Abril 2018

43

A despeito de resistências teóricas pontuais

8

, esse papel contramajo-

ritário do controle judicial de constitucionalidade tornou-se quase univer-

salmente aceito. A legitimidade democrática da jurisdição constitucional

tem sido assentada com base em dois fundamentos principais: a) a proteção

dos direitos fundamentais, que correspondem ao mínimo ético e à reserva

de justiça de uma comunidade política

9

, insuscetíveis de serem atropelados

por deliberação política majoritária; e b) a proteção das regras do jogo de-

mocrático e dos canais de participação política de todos

10

. A maior parte

dos países do mundo confere ao Judiciário e, mais particularmente à sua

suprema corte ou corte constitucional, o

status

de sentinela contra o risco

da tirania das maiorias

11

. Evita-se, assim, que possam deturpar o processo

democrático ou oprimir as minorias. Há razoável consenso, nos dias atuais,

de que o conceito de democracia transcende a ideia de governo da maioria,

exigindo a incorporação de outros valores fundamentais. A imagem frequen-

temente utilizada para justificar a legitimidade da jurisdição constitucional

é extraída do Canto XIV da Odisseia, de Homero: para evitar a tentação do

canto das sereias, que levava as embarcações a se chocarem contra os recifes,

Ulysses mandou colocar cera nos ouvidos dos marinheiros que remavam e

fez-se amarrar ao mastro da embarcação

12

. Sempre me fascinou o fato de que

ele evitou o risco sem se privar do prazer.

Um desses valores fundamentais é o direito de cada indivíduo a igual

respeito e consideração

13

, isto é, a ser tratado com a mesma dignidade dos

demais – o que inclui ter os seus interesses e opiniões levados em conta. A

democracia, portanto, para além da dimensão procedimental de ser o go-

verno da maioria, possui igualmente uma dimensão substantiva, que inclui

igualdade, liberdade e justiça. É isso que a transforma, verdadeiramente, em

um projeto coletivo de autogoverno, em que ninguém é deliberadamente

deixado para trás. Mais do que o direito de participação igualitária, de-

mocracia significa que os vencidos no processo político, assim como os

segmentos minoritários em geral, não estão desamparados e entregues à pró-

8

E.g.

, Jeremy Waldron,

The core of the case against judicial review

.

The Yale Law Journal 115:

1346, 2006; Mark Tushnet,

Taking

the Constitution away from the courts

, 2000; e Larry Kramer,

The people themselves: popular constitutionalism and judicial review,

2004.

9 A equiparação entre direitos humanos e reserva mínima de justiça é feita por Robert Alexy em diversos de seus trabalhos.

V.,

e.g.

,

La institucionalización de la justicia

, 2005, p. 76.

10 Para esta visão processualista do papel da jurisdição constitucional, v. John Hart Ely,

Democracy and distrust

, 1980.

11 A expressão foi utilizada por John Stuart Mill,

On Liberty

, 1874, p. 13: “A tirania da maioria é agora geralmente incluída

entre os males contra os quais a sociedade precisa ser protegida (...)”.

12 V.,

e.g.

, John Elster,

Ulysses and the sirens

, 1979.

13 Ronald Dworkin,

Taking rights seriously

, 1997, p. 181. A primeira edição é de 1977.