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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 286 - 317, Janeiro/Abril 2017

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O conteúdo clássico da separação dos poderes pode ser conceitua-

do, em linhas gerais, como a divisão de funções estatais privativas ou não

entre diversos órgãos, que se controlam reciprocamente por intermédio de

mecanismos instituídos pelo Direito, para resguardar a esfera de liberdade

dos indivíduos e do corpo social contra os abusos potenciais de um poder

absoluto. No conceito clássico de separação dos poderes, nota-se a conexão

entre as matrizes europeia (divisão de funções entre diversos órgãos) e norte-

-americana (controle recíproco), sendo ambas as concepções básicas respon-

sáveis pelo caráter científico alcançado pelo princípio ao longo dos anos.

Não se deve perder de vista, no entanto, que o valor subjacente ao

conceito clássico de separação dos poderes é a liberdade, uma vez que toda a

teoria liberal antiabsolutista emoldurada nos séculos XVIII e XIX perseguiu

a linha ideológica relativa à “limitação do exercício do poder – garantia da

liberdade”. A teoria clássica da separação de poderes firmou-se em um con-

texto de valorização à proteção da liberdade individual em face dos abusos

do Estado, no qual era evidente a dicotomia Estado-sociedade pela prevalên-

cia de uma relação vertical de subordinação entre os dois.

Naquelas circunstâncias históricas, que precederam o florescimento do

Estado liberal no século XIX, presumia-se uma igualdade formal em razão da

qual o Estado não poderia interferir na esfera individual dos cidadãos que, por

sua conta e risco, teriam condições de satisfazer suas necessidades materiais e

existenciais. Por obra do constitucionalismo da época, surgiram, no século

XVIII, os direitos fundamentais de primeira dimensão, que correspondem aos

direitos individuais e políticos, pelos quais os indivíduos possuem uma esfera

de liberdade intangível, na qual o poder do Estado é juridicamente limitado,

devendo abster-se de interferir na liberdade de seus membros.

Aliás, segundo Piçarra, a liberdade como elemento justificador é tão

intimamente ligada à separação de poderes que passa a fazer parte do núcleo

imutável do princípio. Para o pensador luso, sob o aspecto orgânico-funcio-

nal, o princípio da separação de poderes continua a ser compreendido como

“princípio de moderação, racionalização e limitação do poder político-esta-

dual no interesse da liberdade”, o que caracteriza “o seu núcleo imutável.”

23

Vale dizer que o arranjo tradicional da separação de poderes como dogma do

Estado se distancia em grande medida do panorama atual das relaç

ões

entre

as esferas de poder e entre estas e a sociedade.

23 PIÇARRA, N. Obra citada, p. 26.