

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017
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do nascimento pode ainda ser observada nos casos de aborto espontâneo:
mesmo para os segmentos que reprovam a liberalização do aborto, por mais
que se trate de um fato extremamente doloroso, para a maioria das famílias,
o evento não costuma representar sofrimento comparável à perda de um
filho já nascido
53
. Essa noção, ainda que fortemente arraigada no sentimento
social, também repousa sobre fundamentos científicos. Nos tempos atuais,
já não se tem dúvidas acerca da absoluta impossibilidade de que o feto apre-
sente capacidade mínima para a racionalidade, pelo menos até a formação
do córtex cerebral (antes da décima segunda semana, não está formada a
estrutura cerebral, só a partir da vigésima semana se desenvolvem as funções
cerebrais superiores e, apenas a partir da vigésima terceira semana, poderá
existir um ser autônomo viável
54
).
Por todas estas razões, afirma-se que o nascituro, como vida humana
e como projeto de pessoa, merece a proteção do ordenamento jurídico e da
Constituição, mas não o mesmo grau de proteção que se confere à pessoa
55
.
Não obstante, não é o feto ainda pessoa. É pessoa
in fieri,
pessoa potencial,
mas ainda não é pessoa, da mesma forma que uma semente pode ser qualifica-
da como árvore em potencial, mas nunca como árvore
56
. Assim, uma vez que a
proteção constitucional brasileira à vida intrauterina é menos intensa do que a
assegurada à vida das pessoas nascidas
57
, podendo ceder, mediante uma ponde-
ração de direitos fundamentais e de interesses constitucionalmente protegidos
impunibilidade do aborto negligente e a irrelevância penal de todo o atentado contra a vida pré-uterina apontam para
uma diversidade valorativa.
53 SARMENTO, Daniel.
Legalização do Aborto e Constituição
, 2005. p.30 Disponível em
<http://www.mundojuri-dico.adv.br.>.Acesso em 18 maio de 2016.
54 Cf. PEREIRA, Rui. Op., cit, p.80-81.
55 Neste ponto, cumpre esclarecer que vida humana e pessoa humana não são a mesma coisa. Indiscutivelmente, o
embrião pertence à espécie
homo sapiens
, sendo, portanto, humano. Por outro lado, embora habite o corpo da mãe, ele,
obviamente, não se confunde com as vísceras maternas, ao contrário do que afirmavam os antigos romanos. Possui o
embrião identidade própria, caracterizada pelo fato de que constitui um novo sistema em relação à mãe, e é dotado de um
código genético que já contém as instruções para o seu desenvolvimento biológico. Trata-se, portanto, de autêntica vida
humana. Por outra banda, o Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer, logo no seu art. 2º, que “a personalidade
civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Neste
sentido, tem o nascituro apenas uma personalidade potencial, que só vem a concretizar-se após o parto com vida, surgindo
a personalidade jurídica só com o nascimento. Cf. MORI, Maurizio.
A Moralidade do Aborto
. Trad. Fermin Roland
Schramm. Brasília: Ed. UNB, 1997, pp. 43-62.
56 Da mesma forma, a Ministra do STF Carmen Lúcia Antunes averbou que “há que se distinguir, portanto, ser humano
de pessoa humana (...) O embrião é, parece-me inegável, ser humano, ser vivo, obviamente (...)Não é, ainda, pessoa, vale
dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana.”. Cf. ROCHA, Carmen
Lúcia Antunes (Coord.).
O Direito à Vida Digna
. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 22
57 O Tribunal Constitucional Espanhol no Acórdão53/1985também adotou, como premissa, a ideia de que a vida do
nascituro é protegida pela Constituição, mas não com a mesma intensidade com que se tutela a vida humana após o nas-
cimento. Para a Corte espanhola, muito embora a vida do embrião ou feto seja um bem constitucionalmente protegido,
não há um direito fundamental a essa vida.