Background Image
Previous Page  24 / 338 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 24 / 338 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017

24

do nascimento pode ainda ser observada nos casos de aborto espontâneo:

mesmo para os segmentos que reprovam a liberalização do aborto, por mais

que se trate de um fato extremamente doloroso, para a maioria das famílias,

o evento não costuma representar sofrimento comparável à perda de um

filho já nascido

53

. Essa noção, ainda que fortemente arraigada no sentimento

social, também repousa sobre fundamentos científicos. Nos tempos atuais,

já não se tem dúvidas acerca da absoluta impossibilidade de que o feto apre-

sente capacidade mínima para a racionalidade, pelo menos até a formação

do córtex cerebral (antes da décima segunda semana, não está formada a

estrutura cerebral, só a partir da vigésima semana se desenvolvem as funções

cerebrais superiores e, apenas a partir da vigésima terceira semana, poderá

existir um ser autônomo viável

54

).

Por todas estas razões, afirma-se que o nascituro, como vida humana

e como projeto de pessoa, merece a proteção do ordenamento jurídico e da

Constituição, mas não o mesmo grau de proteção que se confere à pessoa

55

.

Não obstante, não é o feto ainda pessoa. É pessoa

in fieri,

pessoa potencial,

mas ainda não é pessoa, da mesma forma que uma semente pode ser qualifica-

da como árvore em potencial, mas nunca como árvore

56

. Assim, uma vez que a

proteção constitucional brasileira à vida intrauterina é menos intensa do que a

assegurada à vida das pessoas nascidas

57

, podendo ceder, mediante uma ponde-

ração de direitos fundamentais e de interesses constitucionalmente protegidos

impunibilidade do aborto negligente e a irrelevância penal de todo o atentado contra a vida pré-uterina apontam para

uma diversidade valorativa.

53 SARMENTO, Daniel.

Legalização do Aborto e Constituição

, 2005. p.30 Disponível em

<http://www.mundojuri-

dico.adv.br.>.Acesso em 18 maio de 2016.

54 Cf. PEREIRA, Rui. Op., cit, p.80-81.

55 Neste ponto, cumpre esclarecer que vida humana e pessoa humana não são a mesma coisa. Indiscutivelmente, o

embrião pertence à espécie

homo sapiens

, sendo, portanto, humano. Por outro lado, embora habite o corpo da mãe, ele,

obviamente, não se confunde com as vísceras maternas, ao contrário do que afirmavam os antigos romanos. Possui o

embrião identidade própria, caracterizada pelo fato de que constitui um novo sistema em relação à mãe, e é dotado de um

código genético que já contém as instruções para o seu desenvolvimento biológico. Trata-se, portanto, de autêntica vida

humana. Por outra banda, o Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer, logo no seu art. 2º, que “a personalidade

civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Neste

sentido, tem o nascituro apenas uma personalidade potencial, que só vem a concretizar-se após o parto com vida, surgindo

a personalidade jurídica só com o nascimento. Cf. MORI, Maurizio.

A Moralidade do Aborto

. Trad. Fermin Roland

Schramm. Brasília: Ed. UNB, 1997, pp. 43-62.

56 Da mesma forma, a Ministra do STF Carmen Lúcia Antunes averbou que “há que se distinguir, portanto, ser humano

de pessoa humana (...) O embrião é, parece-me inegável, ser humano, ser vivo, obviamente (...)Não é, ainda, pessoa, vale

dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana.”. Cf. ROCHA, Carmen

Lúcia Antunes (Coord.).

O Direito à Vida Digna

. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 22

57 O Tribunal Constitucional Espanhol no Acórdão53/1985também adotou, como premissa, a ideia de que a vida do

nascituro é protegida pela Constituição, mas não com a mesma intensidade com que se tutela a vida humana após o nas-

cimento. Para a Corte espanhola, muito embora a vida do embrião ou feto seja um bem constitucionalmente protegido,

não há um direito fundamental a essa vida.