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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017

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2.3 O direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo

A gravidez e a maternidade têm intensa conexão com a ideia de autonomia

reprodutiva, cujo fundamento pode ser encontrado na própria ideia de dignidade

humana da mulher, bem como nos direitos fundamentais à liberdade e à pri-

vacidade, pela modificação radical que podem provocar no rumo da existência

de uma mulher, sendo a escolha de ter ou não um filho uma das escolhas mais

importantes na vida de uma mulher

80

. Se, por um lado, esta decisão pode conferir

um novo significado à vida, por outro, pode sepultar projetos e inviabilizar certas

escolhas fundamentais, pois, mesmo com todas as mudanças do mundo contem-

porâneo, ainda é sobre as mães que recai o maior peso na criação dos seus filhos

81

.

Em todos os ordenamentos jurídicos aqui estudados, a discussão da

constitucionalidade da IVG se deu sob o prisma da dignidade humana, da

privacidade, da autonomia e do respeito à autodeterminação de cada mulher

ou homem, no senntido de que pudessem decidir sobre suas próprias vidas

e se comportar de acordo com suas decisões, sem interferências do Estado

ou de terceiros

82

. Nos Estados Unidos, a doutrina de garantia da privacidade

(

privacy doctrine

) e o crescente movimento feminista foram determinantes

para pressionar a flexibilização das legislações dos estados

83

, que culminou

no julgamento do célebre caso norte-americano

Roe v. Wade 410 US 113

(1973)

. Tendo como fundamento principal o direito à privacidade como li-

berdade individual fundamental, protegida pela Décima Quarta Emenda à

Constituição (cláusula do devido processo), a Suprema Corte dos Estados

Unidos declarou inconstitucional, em 1973, qualquer lei que proibisse a livre

e voluntária decisão da mulher, assistida por seu médico, em interromper a

gravidez

84

. Nesta decisão, entendeu-se que o direito de privacidade é amplo o

suficiente para compreender a decisão da mulher sobre interromper ou não

80 Esta preocupação com os direitos reprodutivos é recente, tendo se consolidado sobretudo a partir das Conferências do

Cairo de 1994 e de Beijing de 1995, como o resultado da luta do movimento feminista. Neste sentido, é eloquente a reda-

ção do Parágrafo 95 da Plataforma da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, que afirma o direito humano de “decidir

livre e responsavelmente o número de seus filhos, o momento de seu nascimento e o intervalo entre eles”, bem como o de

“adotar decisões relativas à reprodução sem sofrer discriminação, coações nem violências”. Disponível em

<http://www

.

onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/03/declaracao_pequim.pdf.> Acesso 06 out 2016

81 Cf. PIOVESAN, Flávia. “Os Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos”. In: BUGLIONE, Samantha (Org.).

Reprodução e Sexualidade:

Uma Questão de Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, pp. 61-79, p. 7

82 Cf. NINO, Carlos Santiago. Op. Cit. 1989, pp. 199-265

83 HALL, Kermit L.

The Oxford Guide to United States Supreme Courts Decisions.

Oxford University Press,

1999, p. 262-265

84 Com base nesta orientação, a Suprema Corte, por 7 votos a 2, declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do

Texas, que criminalizava a prática do aborto a não ser nos casos em que este fosse realizado para salvar a vida da gestante.

Cf. DWORKIN, Ronald.

O Domínio da Vida

. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.