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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017

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nascituros

44

e inovou ao fazer uma distinção didática entre garantia da vida

humana (que abarca a vida pré-natal) e direito à vida propriamente dito (de

que serão apenas titulares as pessoas já nascidas)

45

.

Para ampliar a discussão, recorremos à metáfora da “Tábua de

Carneades”

46-47

em que os autores questionam como deveriam agir dois náu-

fragos que estivessem em mar alto sobre uma tábua com capacidade para

suportar apenas um náufrago: poderia um deles empurrar o outro, conde-

nando-o à morte para salvar a sua própria vida? Entende-se que a conduta do

náufrago é ilícita, é contrária ao direito e desvaliosa ou danosa socialmente,

mas não é censurável porque não se pode exigir do naufrágo um comporta-

mento que, para ser conforme ao direito, deveria ser heroico.

Para transpor esta situação para o domínio do aborto, precisamos

considerar que a mulher grávida, em relação ao nascituro, não é apenas um

náufrago concorrente mas, outrossim, a própria tábua

48

. Para melhor adaptar

o exemplo da tábua, é preciso pensar num náufrago que é obrigado a boiar à

tona da água para o outro (que não sabe nadar) se colocar em cima dele. Não

podemos afirmar que o náufrago tenha o dever de sacrificar a sua liberdade

de movimentação e o seu já reduzido bem-estar físico, servindo de boia ao

seu companheiro. Mesmo se o “náufrago-boia” fosse o pai do outro náufra-

go, não subsiste o dever de salvamento quando a sua efetivação provoque a

morte ou uma ofensa corporal grave a ele.

Ainda, para completar a analogia, precisamos considerar que o feto,

embora um ser vivo, não é um ser cuja gestação esteja concluída: ao contrá-

rio do filho do náufrago, não é, ainda, “sujeito de uma vida”. Na verdade, o

valor da vida uterina só se pode afirmar por ela ser vida autônoma em devir.

Se, por absurdo, o feto não nascesse e se tornasse um ser humano indepen-

dente, nem sequer faria sentido discutir a relevância penal do aborto. É por

isso que se aceita que o aborto seja menos gravemente punível do que o ho-

micídio, que não seja decretada a sua punibilidade a título de negligência e

que seja penalmente irrelevante qualquer atentado contra a vida pré-uterina.

44 Cf. PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão 85/85, de 25 de Junho. Diário da República - 2.ª série, nº 143,

de 25.06.1985.

45 Cf. ALMEIDA COSTA, António Manuel de.

Aborto e Direito Penal,

Ed. Coimbra, 1984, p.81)

46 Cf. Stratenwerth, p. 138; Jescheck, p. 433 APUD PERREIRA, Rui. Op cit. p.98

47 Nesta mesma linha de que a questão da vida do embrião ou feto é irrelevante para o reconhecimento do direito da mu-

lher ao aborto, Judith Jarvis Thompson formulou a tese mais conhecida: a metáfora do “violinista e do bom samaritano”.

Ver THOMPSON, Judith Jarvis. “A Defense on Abortion”. In: DWORKIN, Ronald.

The Philosophy of Law.

Oxford:

Oxford University Press, 1977, (pp. 112-128)

48 Cf. PERREIRA, Rui.Idem, p.99