

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 90-106, Janeiro/Abril 2017
103
O processo penal brasileiro não apresenta como finalidade primeira
a proteção do menor (ou mesmo de qualquer outra vítima), senão que
esta aparece em um plano muito secundário e distante, submetida ao ob-
jetivo principal, panorama que se encontra em abissal dissonância com o
regramento constitucional, mormente no que toca ao cuidado e integral
proteção devida à criança. Daí a necessidade de (re)pensar sua intervenção
do processo penal, na qualidade de vítima ou testemunha, com adaptação
ou formação dos recursos destinados à utilização do
conhecimento
e da
experiência
da vítima menor.
41
A doutrina, então, variando apenas quanto ao método, sugere que a
inquirição de crianças seja realizada através de profissional habilitado, com
o uso de um ambiente distinto da sala de audiências, onde profissional e
criança possam interagir, tudo visando a combater a chamada
vitimização
secundária
,
42
consistente nos sofrimentos suportados pelas vítimas e pelas
testemunhas, que são provocados pelas instituições encarregadas pelas ins-
tâncias da justiça penal, tais como: polícia, juízes, peritos, criminólogos,
funcionários de instituições penitenciárias etc.
No modelo mais divulgado, através de um ponto eletrônico, as per-
guntas do Juiz, Promotor de Justiça e Defensor Público ou Privado são pas-
sadas a profissional da área psicossocial, que as repassa à criança, de forma
considerada mais coerente e adequada ao seu universo (cognitivo). O papel
do técnico, no chamado
depoimento sem danos
(ou
com redução de danos
),
é basicamente de intermediação, repassando as perguntas feitas pelos profis-
sionais do Direito de maneira adequada, fazendo uso, quando necessário, de
recursos audiovisuais.
Importante destacar que a adoção de tal recurso, assim como na
sistemática da inquirição direta, não garante nem facilita a descoberta de
tem sido afirmado desde os acórdãos do TEDH proferidos nos casos
Kaya, Ergi e Yasa
c. Turquia (diante do direito à
vida),
Kurt
c. Turquia (diante do direito à integridade física) e
Craxi
v. Itália (diante do direito à privacidade), mesmo em
face de procedimentos criminais em que o Estado reconhece a lesão, mas não condena o responsável (
Bekos e Koutropolos
c. Grécia) ou procedimentos criminais em que o Estado condena os responsáveis, mas aplica penas que não são adequa-
das, por manifestamente insuficientes (
Okkali
c. Turquia). Em todos estes
leading cases
, foram censuradas insuficiências e
deficiências das respostas dadas pelo Estado à vítima do crime ou aos familiares da vítima do crime, titulares do direito de
queixa, tendo aquelas insuficiências e deficiências provocado uma vitimização secundária.
41 Frise-se, como premissa necessária ao desenvolvimento do trabalho, que é impensável a exclusão de crianças e adoles-
centes do rol de
testemunhas
ou
ofendidos
que deverão ser ouvidos no processo penal, seja pelas garantias quanto à ampla
produção probatória que amparam as partes, seja para evitar ou afastar a denominada
síndrome do segredo
na criança.
42 Fala-se, ainda, em
princípio de evitação da segunda vitimização
. A intervenção de uma criança em juízo é vivida geralmente
como uma experiência estressante e potencialmente provocadora de efeitos a largo prazo: os menores podem padecer
de uma grande ansiedade antes, durante e – inclusive – depois da celebração do ato processual. Ademais, confrontação
com adultos e as possíveis perguntas agressivas das partes são as situações que mais sequelas traumáticas podem deixar
nas crianças.