

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19,n. 73, p. 98 - 112, abr. - jun. 2016
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1. Introdução: o chamado plano da existência
O primeiro dos planos de análise do negócio jurídico, à luz da esca-
la difundida por Pontes de Miranda, corresponde ao
plano da existência.
Trata-se do plano que antecede, na teoria ponteana, a análise de todos
os demais: afirma-se que, caso determinado negócio jurídico não apre-
sente seus elementos mínimos de existência (ditos também
pressupostos
por alguns autores),
1
não caberia indagar acerca de sua validade, muito
menos de sua eficácia, pois tais atos seriam reputados simplesmente não
realizados pela ordem jurídica.
2
A lógica interna da teoria é inexpugnável: se o negócio sequer che-
gou a existir, não haveria sentido em verificar se ele atende aos requisitos
de validade e, portanto, está apto a produzir efeitos. Evita-se, assim, o
rígido controle promovido pela teoria das invalidades negociais: para o
direito, tudo acontece como se o negócio nunca houvesse sido celebrado.
Considera-se que o autor da noção jurídica de inexistência foi o ju-
rista alemão Karl Zachariae von Lingenthal,
3
professor da Universidade de
Heidelberg cuja obra influenciou fortemente a doutrina francesa do sécu-
lo XIX – a qual, por sua vez, tecia, à época, os primeiros comentários sobre
a noção de nulidade que se podia extrair do Código Civil francês
.
Zacha-
riae faleceu em 1843, antes da unificação da Alemanha e pouco mais de
meio século antes do advento do BGB. Seus célebres tratados de direito
civil basearam-se, assim, em grande parte no
Code Napoléon
.
1 Antonio Junqueira de AZEVEDO explica que os elementos essenciais gerais do negócio podem ser de duas ordens:
intrínsecos (segundo o autor, o objeto, a forma e as circunstâncias negociais) ou extrínsecos (para ele, o tempo, o
lugar e o agente), sendo estes últimos “também elementos pressupostos, no sentido preciso de que existem antes
de o negócio ser feito” (
Negócio jurídico
, cit., p. 33). Trata-se de divisão dos elementos bastante semelhante àquela
empregada por CARNELUTTI (
Teoria geral do direito
, cit., p. 432-438), embora o autor denomine “pressuposto”
aquilo que se costuma designar, na doutrina brasileira, como requisito de validade.
2 No ponto, valiosa é a clássica lição de AUBRY e RAU, aos quais se atribui, em larga medida, a difusão do conceito de
atos inexistentes (também chamados
actes non avenus
) na França: “L’acte qui ne réunit pas les éléments de fait que
suppose sa nature ou son objet, et en l’absence desquels il est logiquement impossible d’en concevoir l’existence,
doit être considéré non pas seulement comme nul, mais comme non avenu. Il en est de même de l’acte qui n’a pas
été accompagné des conditions et des solenités indispensables à son existence, d’après la lettre ou l’esprit du Droit
positif ” (
Cours de droit civil
. Tome 1er., cit., p. 119)..
3 Veja-se a célebre lição que atribuiria a ZACHARIAE a noção de inexistência: “Il est de la plus grande importance,
non seulement au point de vue purement théorique, mais encore sous le rapport pratique, de bien distinguer les
conditions essentielles du mariage des conditions de validité du mariage. Les premières concernent une question
de fait, la question de savoir si le fait que les lois qualifient de mariage a eu lieu ou n’a pas eu lieu; les secondes
concernent une question de droit, la question de savoir si le mariage, constant en fait, doit être consideré comme
valable en droit: question qui ne peut se présenter qu’autant que l’on suppose déjà l’existence d’un mariage et,
par conséquent aussi, l’éxistence des conditions essentielles d’un mariage. Si les conditions de validité du mariage
manquent, ce mariage doit néanmoins être considéré comme valable provisoirement et jusqu’à ce que la nullité en
soit déclarée par le juge sur l’action en nullité dirigée contre le mariage. Si, au contraire, une seule des conditions
essentielles vient à manquer, il n’y a point de mariage, et il n’est point nécessaire de recourir à une action en nullité”
(
Le droit civil français
. Tome 1er. Paris: Auguste Durand, 1854, p. 166).