

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19,n. 73, p. 98 - 112, abr. - jun. 2016
103
2. Incompatibilidade da noção de inexistência com o direi-
to brasileiro
A teoria do ato jurídico inexistente nunca ingressou no Código Ci-
vil brasileiro,
32
a despeito de sua ampla difusão doutrinária e jurispru-
dencial. Clóvis Beviláqua a havia inserido em seu Projeto, mas a previsão
jamais chegou à redação final do Código Civil de 1916.
33
Quanto ao Có-
digo em vigor, verificou-se particular preocupação, durante sua elabo-
ração legislativa, em se diferenciarem as noções de validade e eficácia,
mas não se fez alusão à existência, que sequer é mencionada em sua
Exposição de Motivos.
34
Também em outros ordenamentos jurídicos que reconhecem dou-
trinariamente a inexistência, como a França e a Itália, omitiram-se os res-
pectivos legisladores a respeito.
35
O silêncio legal sobre a figura da inexis-
tência acabou por ocasionar o surgimento de duas correntes doutrinárias
antagônicas, havendo autores que afirmam a autonomia do plano da exis-
tência em relação ao da validade
36
e outros que sustentam ser a inexis-
tência tão somente uma hipótese de nulidade, rejeitando a expressão.
37
De fato, a noção de um ato jurídico inexistente revela-se, de cer-
ta forma, contraditória com a própria natureza deontológica da ciência
jurídica,
38
uma vez que não cabe, em princípio, ao direito reconhecer a
32 V., dentre outros, PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Instituições de direito civil.
Volume I, cit., p. 542: “Não se en-
contrava no Código de 1916 menção a esta categoria de ineficácia, por ter o legislador recusado consagrar na lei o
princípio que o Projeto Beviláqua havia assentado. Nem no Código de 2002 encontrou abrigo a teoria”.
33 Como anota o próprio autor, “além dos atos nulos e anuláveis, conhecia o Projeto a classe dos inexistentes, que
não se acham compreendidos na noção de nulidade” (
Teoria geral do direito civil
, cit., p. 258).
34 Conforme a "Exposição de Motivos do Código Civil", a busca de precisão terminológica importou uma tomada
de posição por parte do Projeto de Código Civil quanto à necessidade de distinguir-se entre validade e eficácia, não
havendo, porém, menção à inexistência: “Na terminologia do Anteprojeto, por validade se entende o complexo de
requisitos ou valores formais que determina a vigência de um ato, por representar o seu elemento constitutivo, dada
a sua conformação com uma norma jurídica em vigor, seja ela imperativa ou dispositiva. Já a eficácia dos atos se
refere à produção dos efeitos, que podem existir ou não, sem prejuízo da validade, sendo certo que a incapacidade
de produzir efeitos pode ser coeva da ocorrência do ato ou da estipulação do negócio, ou sobrevir em virtude de
fatos e valores emergentes” (
Novo Código Civil
: exposição de motivos e texto sancionado, cit., p. 36).
35 Cf. GALGANO, Francesco.
Il negozio giuridico
, cit., p. 277; CARBONNIER, Jean.
Droit civil
. Tome 1, cit., p. 116.
36 Cf. MIRANDA, F. C. Pontes de.
Tratado de direito privado
. Volume IV, cit., p. 69; AZEVEDO, Antonio Junqueira de.
Negócio jurídico
, cit., p. 63; ASCENSÃO, José de Oliveira.
Direito civil
. Volume II, cit., p. 102.
37 Nesse sentido, por exemplo: GOMES, Orlando.
Introdução ao direito civil
, cit., p. 422; CORDEIRO, António Mene-
zes.
Tratado de direito civil
. Volume II, cit., p. 925.
38 Vale destacar a lição de KELSEN: “O fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui
um ato jurídico (lícito ou ilícito), processando-se no espaço e no tempo, é, por isso mesmo, um evento sensorial-
mente perceptível, uma parcela da natureza, determinada, como tal, pela lei da causalidade. [...] O que transforme
este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como