

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 84 - 97, mai. - jun. 2016
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Chegava ao fim, portanto, após quase uma década, o julgamento
de uma ação que deveria arbitrar sobre a liberdade de escolha da mu-
lher de levar ou não adiante uma gravidez incerta, ainda que apenas em
caso de feto anencéfalo. Contudo, podemos alertar desde já que, neste
caso, o que se viu foi uma decisão que versa sobre questões de gênero
e feminismo que, porém, evitou abraçar esses campos. Com a exceção
apenas da Ministra Carmen Lúcia e do Ministro Celso de Melo, além de
uma breve menção pelo relator Marco Aurélio, o enquadre feminista
e de gênero, que é premente na decisão, foi praticamente excluído da
discussão. Com efeito, ao longo do acórdão restou claro que de forma
alguma se debateu a questão do aborto em si, como questão legítima
das demandas feministas, mas apenas foram consideradas questões de
saúde pública e de legalidade.
Não obstante, além de o tema estar diretamente relacionado com
os discursos desses campos, é sabido que houve um enorme esforço arti-
culatório de grupos de lutas pelos direitos das mulheres e, especialmente,
de movimentos feministas, para que o pedido de interrupção de gravidez
de anencéfalo fosse acatado e um sem número de mulheres pudesse fi-
nalmente lançar mão do procedimento médico sem ter mais que acio-
nar a Justiça. A decisão, portanto, acatou o pleito feminista. Para dialogar
com outras esferas sociais, foi preciso utilizar diversos recursos discursi-
vos, dentre os quais destacam-se o trabalho de face e, essencialmente, a
estratégia de criar a distinção nominativa de “aborto” para “antecipação
terapêutica de parto” que lança o direcionamento argumentativo princi-
pal no acórdão.
Ao alegar que o caso da ADPF 54 não suscitava qualquer discussão
sobre o primeiro termo, o relator do acórdão, seguindo o advogado na
petição inicial, conseguiu amoldar a causa feminista aos discursos hege-
mônicos legais, de viés tradicional e patriarcal. Conforme propõe Warat
(1985)
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, a decisão judicial é uma peça persuasiva que emprega toda clas-
se de recursos argumentativos, que tendem a impor uma conclusão, não
derivada logicamente, mas que logra sua aceitação por associação psico-
lógica e emotiva. Nesse sentido, o caráter persuasivo do discurso jurídico
determina, inevitavelmente, a presença das falácias em seu conteúdo,
como foi o caso da estratégia mencionada, que favoreceu uma abertura
interpretativa ao acolhimento do pedido veiculado na ADPF.
7 WARAT, Luis Alberto. "As falácias jurídicas"
Revista Seqüência.
UFSC, Florianópolis, v. 06 n. 10, 1985, p. 123-128. Dis-
ponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16702/15255.Acesso em dezembro de 2014.