

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 98 - 112, abr. - jun. 2016
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Muito embora o juízo quanto à validade do negócio jurídico (e, mais
ainda, quanto à sua existência, para a doutrina que reconhece tal plano de
análise) diga respeito ao momento da celebração do ato, e conquanto se
afirme que o ato inválido não é apto a produzir efeitos, tal julgamento se
faz, necessariamente, após a celebração, quando o intérprete é provoca-
do a se pronunciar sobre o negócio concreto. Desse modo, o simples fato
da realização material do negócio provoca, na grande maioria das vezes,
alguma repercussão jurídica, já que dificilmente não surgirá alguma situa-
ção jurídica no interregno até o julgamento da validade do ato.
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Por tal razão, embora não seja incorreto associar os negócios jurí-
dicos ditos inexistentes e, ainda, os negócios nulos à inadmissibilidade de
todos ou de alguns dos efeitos aos quais eles tendiam, a diferença práti-
ca em relação a um negócio meramente anulável não é tão significativa:
em qualquer caso, exigir-se-á da ordem jurídica que resolva o problema
dos efeitos já produzidos (ou, caso se prefira, da
aparência
de efeitos,
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expressão que normalmente se usa apenas para justificar por que os mes-
mos não serão, depois, reconhecidos
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).
Eis o grande risco provocado pela noção de inexistência: a afirma-
tiva de que certo negócio simplesmente não existiu parece implicar que
nenhuma providência a respeito dele precisa ser tomada, uma vez que o
ato reputado como “não acontecido” não poderia, em tese, ter produzi-
do qualquer eficácia a ser desconstituída.
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Neste ponto, seria preferível
acontecer, é verdade, em certos casos, ainda que as condições essenciais de um casamento não existam, que seja
necessário intentar uma ação; e é isso que acontece notadamente quando o fato de um casamento contratado
existe em aparência” (
Droit civil français
. Volume I, cit., p. 166). “Il peut, il est vrai, en certain cas, quoique les condi-
tions essentielles d’un mariage n’existent pas, être nécessair d’intenter une action; et c’est ce qui a lieu notamment
lorsque le fait d’un mariage contracté existe en apparence”.
49 Neste sentido, reconhecia René JAPIOT que, em alguns casos de nulidade, “os efeitos do ato se produzem e
duram até que uma ação venha fazê-los desaparecer”. Para o autor, a nulidade, “se está oculta, não tem consequên-
cias” enquanto não for impugnada em juízo (
Des nullités en matière d’actes juridiques
, cit., p. 130).
50 Aduz Orlando GOMES que a inexistência “é uma aparência de ato. Essa aparência precisa ser desfeita, o que se
há de verificar, necessariamente, mediante pronunciamento judicial, a despeito da opinião contrária dos partidários
da teoria. O negócio inexistente equivalerá, portanto, ao negócio nulo, ainda sob esse aspecto prático” (
Introdução
ao direito civil
, cit., p. 422).
51 Em sentido contrário ao referido na nota anterior, Caio Mário da Silva PEREIRA afirma: “Costuma-se objetar que
o ato inexistente não deixa de ser uma aparência de ato, que há mister seja desfeita, e, para tanto, requer-se um de-
creto judicial, o que (concluem) induz equivalência entre a nulidade e a inexistência. Não nos parece, porém, assim.
Teoricamente, há uma diferenciação positiva entre a inexistência e a nulidade. E na prática os efeitos diferem. [...]
O ato inexistente não pode produzir qualquer efeito, independentemente de um pronunciamento da inexistência.
Um contrato de compra e venda de um imóvel de valor superior à taxa legal é nulo se não revestir a forma pública
(Código Civil, art. 108), mas o juiz terá de proferir um decreto de nulidade. Faltando, porém, a própria realização
do contrato, o juiz poderá, pura e simplesmente, isentar o pseudocomprador de uma prestação” (
Instituições de
direito civil
. Volume I, cit., p. 544).
52 Tornou-se difundida na doutrina francesa a frase “on n’annule pas le néant”, literalmente, “não se anula o nada”.