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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 72, p. 168 - 190, jan. - mar. 2016
Isto equivale a tratar a mulher como objeto. Ao marido incumbe a tarefa
de manter a sua “propriedade” intacta. E os meios de comunicação, ao
divulgarem a propaganda de cerveja, também difundem a ideia de que a
mulher é um objeto que pode ser comprado. Por isso, carros, barcos, be-
bidas alcóolicas (e inclusive cigarros no passado) são vinculados à ima-
gem de uma bela mulher. Contraditoriamente, são esses mesmos meios
de comunicação que divulgam hoje, no Brasil, dados sobre a prática da
violência doméstica!
Agora, o Estado não toma nenhuma iniciativa de cunho educacional
para evitar que maridos se comportem como “proprietários” de mulhe-
res, ele apenas se propõe a repreender aqueles que chegam às vias de
fato! Atua-se, apenas, contra determinadas formas de violência patriarcal,
e ainda assim, somente sob o viés penal.
Dessa forma, os “avanços” de ruptura com o legado patriarcalista
dividem espaço com os mecanismos que promovem a própria manuten-
ção da cultura patriarcal
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! Nesse contexto, torna-se ainda mais difícil para
a vítima de violência doméstica (e para a comunidade em geral) identificar
determinadas condutas como potenciais atos de agressão. Isso também
permite explicar a pouquíssima incidência da lei Maria da Penha em casos
em que não há emprego de violência física contra a vítima. É a alegação da
violência física que permite desvendar a prática de uma possível violência
psíquica, mas o contrário não é válido.
Ademais, também contribui para essa situação dialética a opção de
vários governos por tratar o problema da violência contra a mulher priori-
tariamente pelo viés punitivista, por meio da criminalização de condutas
e da criação de um sub-sistema de justiça penal. Essa opção se relaciona
também com o fator anteriormente mencionado. É plausível que muitas
autoridades estatais (e internacionais) acreditem que criminalizando a
manifestação mais extrema da cultura patriarcal, o problema da violência
contra a mulher se resolva. Por isso, os Estados mudaram, nas últimas dé-
11 Um exemplo concreto da difusão dessa cultura no meio jurídico constitui a afirmação de Cabette, um jurista que
comentou a lei de feminicídio (posteriormente retomarei seu texto ao tratar do princípio da igualdade na qualifi-
cadora do feminicídio) : “O amor sexual é egoísta, profundamente egoísta. Trata-se o objeto do desejo como uma
propriedade que se pode
utendi et abutendi
, de que se tem o direito de dispor livremente, que se pode sequestrar
unicamente para nós, roubando-a ao mundo inteiro, para a gozarmos à nossa vontade. Será que uma mera mu-
dança de nome e de posição topográfica de uma qualificadora do homicídio seria capaz de dar cabo de uma paixão
destrutiva humana (
comum a homens e mulheres
) que configura uma categoria criminológica? É claro que não!
Isso somente pode passar pela cabeça de pessoas que não têm a mais mínima noção sequer das diferenças entre
Criminologia e Direito Penal". CABETTE, Eduardo.
Feminicídio
. Mais um capítulo do direito penal simbólico agora
mesclado com o politicamente correto.
In:
http://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/159300199/feminicidio--mais-um-capitulo-do-direito-penal-simbolico-agora-mesclado-com-o-politicamente-correto. (grifo nosso).