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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 72, p. 168 - 190, jan. - mar. 2016
de “
não problematização da cultura patriarcal
”. A invisibilidade feminina
funciona como uma espécie de “
escudo de proteção
” da cultura patriar-
cal. Quando não se desvela o véu da ignorância e não se torna pública
a violência sofrida pela mulher, o machismo não é percebido negativa-
mente e, portanto, não há razões plausíveis para pleitear uma mudança
social. Aqui cabe um esclarecimento mais detalhado. Se em determinado
contexto social atitudes machistas são percebidas como “normais” pela
comunidade (e autoridades), como esperar que mude a percepção social
com relação aos efeitos nefastos da cultura patriarcal
10
?
Emprego aqui dois exemplos para ilustrar esta tese. A repreensão
verbal do marido em face da roupa “muito decotada” usada pela espo-
sa para ir a uma festa e a publicidade de cerveja que se utiliza de uma
bela modelo, trajando uma camiseta e um short curtinho, para estimular
e aumentar a venda do produto. Essas duas situações podem passar des-
percebidas pela maioria das pessoas ou apenas serem identificadas como
situações “inócuas”. No primeiro caso, porque isso é o que se espera de
quem assume o papel social de “marido”, que cuide de sua esposa, que
evite que ela possa ser “exposta” ao assédio de terceiros. Então, frente
a uma roupa considerada ousada, ele deve se manifestar para alertar a
esposa acerca da conveniência do uso daquela vestimenta. No caso do
publicitário, é o que se espera de quem pretende aumentar a venda de
cervejas entre o público consumidor. Como as pesquisas indicam que a
maioria dos consumidores de cerveja pertencem ao gênero masculino,
associar o consumo de bebida alcóolica com uma bela mulher, com trajes
provacantes, consiste em uma estratégia para atrair o público masculino
heterossexual.
Ora, a autoridade pública, tal como grande parte da população, não
percebe o potencial lesivo que está por de trás da “simples” repreensão
verbal (não use essa roupa!) e do citado anúncio de bebida. Não percebe
que ambas as condutas constituem manifestações do processo de “
coi-
sificação
” da mulher. É a suposta “inferioridade” social da mulher que
possibilita que ela seja tratada como um ser “incapaz” de tomar decisões
sensatas e que, por tal motivo, deve permanecer sob a tutela do esposo.
10 Um exemplo em concreto. Em 27 de setembro de 2013 um conhecido jornalista do jornal
Folha de São Paulo
(Hélio Schwartsman), publicou um texto comentando uma pesquisa do IPEA que indicava aumento de assassinatos
de mulheres depois do advento da Lei Maria da Penha. O jornalista atacou duramente a lei e, empregando argumen-
tos sexistas, responsabilizou as mulheres pelas agressões sofridas e sustentou que os homens matam as mulheres
simplesmente porque são fisicamente mais fortes. A reportagem pode ser consultada em:
http://www1.folha.uol.
com.br/colunas/helioschwartsman/2013/09/1348060-um-caso-de-fracasso.shtml.