

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 71, p. 159 - 186, nov. - dez. 2015
172
dos naquelas esferas, encontram-se presentes apenas de maneira reflexa
nas relações comerciais. Daí a conclusão de que, sendo as relações mer-
cantis instrumento de satisfação de interesses meramente patrimoniais
dos agentes (não obstante a necessidade de respeito aos valores extrapa-
trimoniais promovidos pela sua função social), deve ser autorizada uma
maior liberdade de atuação destes, sendo menos rígidos os parâmetros
de aferição da abusividade de suas condutas.
Tal conclusão não implica, obviamente, a consideração de que ne-
nhumato poderá ser reputado ofensivo à boa-fé no campo comercial. Judith
Martins-Costa traz à colação caso concreto no qual se averiguou o exercício
abusivo (ou disfuncional, na terminologia adotada pela autora) de posição
contratual em pacto entre empresários. Tratava-se de contrato celebrado
entre fornecedora e distribuidora para prestação de serviço de distribuição
de cartões telefônicos, com vigência pelo prazo de doze meses, prorrogável
por igual período, no qual se previa prazo para pagamento de 30 dias após
o recebimento dos cartões, contendo cláusula de rescisão. No mesmo dia
em que se acionou a referida cláusula, ajustou-se novo contrato, de teor se-
melhante ao primeiro, que, contudo, não previa expressamente o prazo de
pagamento. Aproveitando-se dessa lacuna, passou a fornecedora a exigir
o pagamento em prazo mais curto que o anterior, amparada no artigo 331
do Código Civil
59
. Em razão disso, a distribuidora, que contava com a venda
dos cartões para terceiros para que pudesse auferir recursos e adimplir sua
prestação, ficou impossibilitada de efetuar o pagamento no prazo devido.
A antijuridicidade da conduta da fornecedora decorre do fato de que, em-
bora tenha atuado com respaldo em dispositivo legal, não concedeu à con-
traparte prazo suficiente para se adaptar à nova realidade, inviabilizando a
atividade econômica da distribuidora
60
.
Se a limitação de direitos e a imposição de deveres são duas faces
de uma mesma moeda
61
, admitir parâmetros menos rígidos para a aferi-
59 “Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor
exigi-lo imediatamente”.
60 O caso foi levado ao judiciário gaúcho (TJRS, 15ª C.C., AC nº 70010341121, Rel. Des. Angelo Maraninchi Gian-
nakos, j. 06.07.2005), e encontra-se relatado em: MARTINS-COSTA, Judith. "O Exercício Jurídico Disfuncional...",
op.
cit.
, p. 54-55.
61 Como bem notou a doutrina: “A rigor, as três funções apontadas acima poderiam ser reduzidas a apenas duas:
(i) a função interpretativa dos contratos e (ii) a função criadora de deveres anexos. Tecnicamente, são estes deveres
anexos, que formando o núcleo da cláusula geral de boa-fé, se impõem ora de forma positiva, exigindo dos con-
tratantes determinado comportamento, ora de forma negativa, restringindo ou condicionando o exercício de um
direito previsto em lei ou no próprio contrato” (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. "A Boa-Fé Objetiva"...,
op. cit.
, p. 37).