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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 550 - 569, jan - fev. 2015

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2. Autoritarismo e práticas penais

Algumas palavras sobre a transição política no Brasil como condição

para a pré-compreensão das permanências autoritárias no interior do sis-

tema de justiça criminal.

Anthony Pereira sublinha que o Brasil manteve-se afastado da ten-

dência geral, verificada na América Latina, de construção das chamadas jus-

tiças de transição. Ao contrário, salienta Pereira, a atitude oficial do governo

brasileiro sobre o tema até bem pouco tempo era de silêncio e amnésia

8

.

Paulo Sérgio Pinheiro, que integra a Comissão da Verdade instituída

no Brasil em 2012, destaca que uma das características dos regimes au-

toritários que monopolizaram a realidade brasileira durante o Século XX

(1937-45 e 1964-85) consistiu em assegurar o funcionamento de institui-

ções jurídicas anteriores “dentro do quadro normativo ditatorial”

9

.

Assim as justiças penais funcionaram regularmente, mesmo em se-

guida aos golpes de estado, e foram também funcionais aos novos regi-

mes autoritários, incrementando e conferindo às práticas violadoras da

dignidade das pessoas o selo de juridicidade que, aparentemente, inscre-

via tais práticas em um contexto de “normalidade institucional”.

Clássicos exemplos disso, como sublinhado, podem ser extraídos da

ausência quase absoluta, mas bastante impressionante, de censura social

ao emprego da tortura, tolerada em um nível de naturalização da violên-

cia que ainda hoje contamina o aparato estatal de repressão

10

e a igual na-

turalidade como foram construídos socialmente os “inimigos” da ordem.

Sobre este aspecto é ilustrativo o caso mais remoto, de “Olga Be-

nário”, companheira do líder comunista Luis Carlos Prestes que a ditadura

nuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de

um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas.” (p. 94); “As ideologias autoritárias

são ideologias que negam de uma maneira mais ou menos decisiva a igualdade dos homens e colocam em desta-

que o princípio hierárquico, além de propugnarem formas de regimes autoritários.” (p. 94); “...o que caracteriza a

ideologia autoritária, além da visão da desigualdade entre os homens, é que a ordem ocupa todo o espectro dos

valores políticos, e o ordenamento hierárquico que daí resulta esgota toda a técnica da organização política.” (p. 96).

8 PEREIRA, Anthony, W.

Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argen-

tina.

São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 35.

9 PINHEIRO, Paulo Sergio. Prefácio à obra de Anthony W. Pereira,

Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado

de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina

. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 9. Não há nisso nada de extraordinário

quando se compara a experiência àquelas investigadas por Otto Kirchheimer, em

Justicia Política:

"

empleo del pro-

cedimiento legal para fines políticos"

(México, Unión Tipográfica Editorial Hispano Americana, 1961, p. 48): “Durante

la época moderna, cualquiera que sea el sistema legal que predomine, tanto los gobiernos como los grupos privados

han tratado de allegarse el apoyo de los tribunales para sostener o cambiar la balanza de poder político. En forma

disfrazada o no, los problemas políticos se presentan ante los tribunales, para ser confrontados y sopesados en las

balanzas de la ley, por mucho que los jueces se inclinen a evadirlos, puesto que los juicios políticos son inevitables.”

10 KEHL, Maria Rita. "Tortura e sintoma social",

in:

O que resta da ditadura.

São Paulo: Boitempo, 2010, p. 124.