

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 550- 569, jan - fev. 2015
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A cultura de violência do sistema é anterior à ditadura civil-militar
de 1964, que dela tomou partido para à luz solar controlar dissidências e
manter seus esquemas de poder.
A memória oficial do regime autoritário, todavia, não conseguiu fa-
zer sucumbir as memórias dissidentes
5
.
Umas e outras conviveram e até hoje influenciam-se reciprocamen-
te, o que explica a convivência de perspectivas ineludivelmente autori-
tárias no seio do discurso jurídico-penal brasileiro, mais especificamente
no campo do processo penal
6
, bem como, em menor grau, a existência
de categorias típicas do processo penal de matriz iluminista no esquema
processual vigente durante as ditaduras.
A tese desta comunicação é a de que a permanência e predomi-
nância de elementos autoritários, consolidados historicamente na cultu-
ra brasileira, constituem a razão de base, a que se somam naturalmente
outros fatores, para a situação crítica em que se encontram a teoria e a
prática penais na atualidade.
Identificar este cenário de permanências autoritárias é, pois, fun-
damental para compreender a opção metodológica e política de parte
dos estudiosos brasileiros, em defesa de princípios em direito processual
penal caros à democracia, princípios que raramente concretizaram-se na
experiência cotidiana do funcionamento de nosso (brasileiro) sistema de
justiça criminal.
Parte-se aqui de um significado em geral compartilhado do signi-
ficante “autoritário”, que pode ser resumido como estrutura de sistema
político que nega, de forma mais ou menos decisiva, o projeto de igualda-
de entre as pessoas, na consolidação de projetos de vida digna, projetos
que a um só tempo respeitem as diferenças individuais, mas repudiem
as de cunho social e econômico que tornem os seres humanos cativos de
outros seres humanos.
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5 Aguilar Fernández, Paloma.
Políticas de la memoria y memorias de la política
. Madrid: Alianza, 2008.
6 Toma-se a expressão “campo jurídico” no sentido assinalado por José Eduardo Faria, David Trubek e Yves Dezalay:
“Chamamos de ‘campo jurídico’ à articulação de instituições e práticas através das quais a lei é produzida, interpretada
e incorporada às tomadas de decisões na sociedade.” (TRUBEK, David M. e DEZALAY, Yves. "A estruturação global e o
direito: A internacionalização dos campos jurídicos e a criação de espaços transnacionais",
in
Direito e globalização
econômica: implicações e perspectivas.
Organizador: FARIA, José Eduardo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 33).
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Dicionário de Política.
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Trad. Carmen C, Varriale
et
ai.
. Coord. trad. João Ferreira. Rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1ª ed., 1998, v. 1: 674 p. (total: 1.330 p.).
Autoritarismo
– Mario Stoppino. Releva transcrever: “O adje-
tivo ‘autoritário’ e o substantivo autoritarismo, empregam-se especificamente em três contextos: a estrutura dos
sistemas políticos, as disposições psicológicas a respeito do poder e as ideologias políticas.” (p. 94); “Na tipologia
dos sistemas políticos, são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental e dimi-