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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 419 - 434, jan - fev. 2015

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para a paz verdadeira na exceção permanente própria ao Brasil, como nos

aponta a captura, tortura e morte do ajudante de pedreiro Amarildo, na

favela da Rocinha, no Rio de Janeiro recentemente.

Considerar essa transição não se trata, por óbvio, em qualquer for-

ma de generosidade para com o governo anterior, mas da compreensão

da dinâmica própria do dispositivo em curso. Sem o conhecimento do que

se passou, em nome de uma filosofia da história que das aparências do

presente constrói e arbitra o que deve lembrar – esquecer – do passado,

não é simplesmente possível confrontar o poder na forma determinada

na qual ele se manifesta. A transição em curso, que chegou ao momento

atual, é muito mais do que uma mera escolha moral, muito menos algo

restrito à conjuntura brasileira atual – ao contrário, existe aí a manifesta-

ção, ela mesma, da modernidade. É o efeito que Orwell tão bem demons-

trou, na forma de fábula, em seu

A Revolução dos Bichos.

O processo em questão é aquilo que, não raro, se convenciona por

Termidor –

referência ao mês do calendário republicano instituído pela

Revolução Francesa que, por sua vez, diz respeito aos 13 anos (entre 1792

e 1805) nos quais daquela revolução surgiu uma nova ordem, com práti-

cas tão velhas. É o momento ele mesmo que de um levante plural contra

a opressão do velho regime, a burguesia tomou contra do processo, ocu-

pando, dali em diante, o lugar da nobreza de sangue como a nova classe

opressora: o fim, todos sabemos, é a chegada de Napoleão Bonaparte ao

poder proclamando o fim da revolução com o advento da constituição.

Em uma das mais instigantes páginas da história da filosofia, An-

tonio Negri, em seu

Poder Constituinte,

desmontou como ninguém esse

fenômeno: ele está na forma como, na modernidade, a revolução é esva-

ziada pelo dispositivo que separa o poder constituinte e o poder consti-

tuído; a revolução, a forma própria pela qual se manifesta o

investimento

permanente do desejo humano por uma coexistência melhor, é reduzida

a mero mito fundador de uma nova ordem, um poder constituído. O po-

der constituído tem a legitimidade de ter nascido da revolução e, em vir-

tude disso, está autorizado a fazer o que for preciso para efetuar o Bem.

A constituição a qual fez referência Napoleão nada mais é do que

um contrato. Um amplo contrato social que vincula a coletividade por in-

teiro. Nada de novo sob o Sol: a burguesia, desde que existe, conhece uma

forma possível de resolver seus problemas, qual seja, o contrato. Não é de

estranhar, pois, que a ordem burguesa venha acompanhada de um grande