

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 419 - 434, jan - fev. 2015
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fim: que pode aparecer como aprofundamento democrático (o que o mo-
vimento começou a constituir) ou como explicitação do conteúdo neo-
-escravagista, autoritário e racista da democracia formal brasileira (o que
parece que o governo esteja querendo fazer). Para o PT, enquanto partido
dotado de um histórico de esquerda, isso coloca desafios urgentes.
Os ventos de junho continuam soprando: a construção
da paz
No debate que seguiu à palestra do filósofo italiano Antonio Negri,
no dia 19 de novembro, entre outras considerações, foram colocadas duas
questões bem importantes.
Em primeiro lugar, um advogado ativista relatou o comentário de
um ex-ministro do STF, que, respondendo-lhe sobre o problema da multi-
plicação de ações incompatíveis com a constituição e a democracia mais
em geral como forma de repressão às manifestações, teria feito uma de-
claração surpreendente: “
Nunca viu um estado em guerra (!) respeitar
plenamente as convenções de Genebra
”. Em segundo lugar, alguém disse
que a violência praticada pelos jovens adeptos da tática Black Bloc não era
um problema moral, mas sim político e sua dimensão negativa estaria no
fato de ela ter “afastado os manifestantes das manifestações e enfraque-
cido o movimento de junho”.
O interesse dessas duas colocações aparece claramente quando as
juntamos e ao mesmo tempo as fazemos funcionar pelo avesso, ou seja
na perspectiva que os ventos de Junho lhe deram. No que diz respeito à
primeira anedota, qual seja a declaração explícita de um alto magistrado
de que estaríamos numa “guerra”, é inevitável lembrar o que disse o en-
tão ministro da justiça francês – e este então ministro era, ninguém mais,
ninguém menos do que o socialista François Mitterand – sobre o movi-
mento pela independência da Argélia: “Pra guerra como na guerra” (“À la
guerre comme à la guerre”). Ambas as declarações foram de uma rara sin-
ceridade: o Estado e a elite se consideram, sempre que postos em xeque
pelas demandas da multidão, numa “guerra” que travam sem respeitar
nenhum Estado de Direito, nenhuma regra. Claro, é estarrecedor que al-
guém que até ontem julgava em nome dos princípios constitucionais, hoje
possa falar tão abertamente e associar as mobilizações de rua a um “con-
flito armado”. Contudo, o cinismo dessa fala tem um lado interessante,
pois torna explícito o incômodo da elite diante da ameaça democrática.