

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 330 - 339, jan - fev. 2015
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A esfera pública nacional – e nisso incluem-se os atores jurídico-
-políticos e suas considerações cogentes e inescapáveis sobre a interpre-
tação constitucional incidente em todo o sistema - parece ter entendido
(na esteira do bom e velho ‘
jeitinho’
) a ordem do dia pela metade. E sem-
pre, logicamente, pela metade que (lhe) importa na casuística – o que não
impede de a interpretação virar do avesso e as bases do discurso serem
aquelas diametralmente opostas dependendo da sua posição, ou da posi-
ção de seu interesse, na contenda imediatamente posterior.
Nesse estranho conceito de
democracia
do século XXI nos trópicos,
vale, eufemisticamente,
tudo
: pessoas que atentam contra a
dignidade
e
a
honra
de outras se escudando na ‘liberdade de expressão’ como se as
primeiras não fossem
clauses
fundamentais óbvias e literais, e como se
a segunda fosse uma espécie de denso nevoeiro gramatical onde abso-
lutamente qualquer coisa pode ser abrigada – e onde qualquer incauto
pode buscar esconderijo. Pessoas retorcendo padrões e elementos
pétre-
os
como se o ‘tempero’ (mal utilizado, aqui) da ‘democracia’ fosse passível
de transmutar quaisquer conceitos em nome de um ideal (que pouco tem
de
democrático
).
O âmbito jurídico-penal é
habitat
de um sem-número desse tipo de
posicionamentos enviesados de tal forma que merece se distinguir como
capítulo à parte na discussão.
Estamos em um dos únicos países do mundo onde (ainda que de
forma controversa e por vias tortuosas) o debate em torno do
garantis-
mo penal
4
de matriz
ferrajoliana
ganhou o
mainstream
(ou parcela dele).
Do mesmo modo, estamos – de certa forma – no único país do mundo
onde, provavelmente, a parte mais obscura da teoria, seu desdobramento
posterior à sedimentação inicial e sua ‘sombra’ conseguiram mais suces-
so e mais implemento que a própria base conceitual: muito antes de se
compreender o que realmente significa a vivificação constitucional-demo-
crática dos preceitos penais/processuais nos cotidianos teóricos e foren-
ses, e de buscar sua real consagração
5
, já se parte, no Brasil, para uma
orientação que salta no tempo para falar em termos obtusos de versões
4 Fundamentalmente no que diz respeito aos seus básicos axiomas de aplicação jurídica: Cf. FERRAJOLI, Luigi.
De-
recho y Razón. Teoría del garantismo pena
l. Trad. Perfecto Andres Ibáñez
et alii.
Madrid: Trotta, 1995, p. 93-94.
5
“A assunção da Constituição como locus de onde são vislumbrados os direitos fundamentais compartilha, portanto,
a tese, desenvolvida entre outros por Ferrajoli, da existência de um nexo indissolúvel entre garantia dos direitos fun-
damentais, divisão dos poderes e democracia, de sorte a influir na formulação das linhas gerais da política criminal
de determinado estado”
. PRADO, Geraldo.
Sistema Acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais
penais.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, 4 ed., p. 16.