

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 330 - 339, jan - fev. 2015
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Vivemos em um país que, mal assumindo, jurídica e politicamente,
as propostas e as bases ideológicas contidas na ideia do direcionamento
constitucional, já adquiriram certa (i)maturidade canhestra. Traduzem-se
e interpretam-se algumas pedras fundamentais constitucionais à moda
do velho clientelismo, do tradicional fisiologismo político e de uma antiga
versão de patrimonialismo tal ideologia dominante que – é inegável – a
própria essência de nossa Constituição visou combater e expurgar. Vive-
mos em uma era onde a
liberdade
como valor constitucional é quase sem-
pre verificada enquanto uma
liberty
econômica
2
, e raramente como uma
freedom
em seu mais fundamental e amplo sentido. Vivemos em um mo-
mento triste onde os poderes constituídos não apenas estimulam, permi-
tem, como também solidificam posicionamentos que transformam alguns
dos mais caros preceitos fundamentais da carta política em um teatro do
absurdo, e as
prerrogativas
(e
liberdades
) passam a ser verdadeiramente
invocáveis como escudo quando de ataques visíveis às próprias bases (e à
própria
liberdade
).
Quando a liberdade está atrelada à
ordem
, e mais, a um
específico
conceito de ordem
que é epiderme de um
leitmotiv
que precisa de enco-
brimento quando não ousa assumir quem é (ou a serviço de quem está
3
),
estamos esfacelando preceitos em nome de outros – e o pior: buscando
logros que convençam o público do picadeiro do contrário.
É preciso que se compreenda, de uma vez por todas, que a
Constituição não é um espaço simplesmente neutro de exercício
de ‘liberdades retóricas’ em grau irrestrito e indiscriminado (e
descomprometido de alguns posicionamentos e pontos de partida bem
definidos), tanto quanto a ‘democracia’ não é justificativa última e autista
para toda e qualquer coisa.
2
“Desde a ascensão monetarista, fundamentalmente com Hayek e Friedman, o discurso ganhou um significante
verbete: ‘liberdade’ (...) ao Estado, compete retirar os entraves de uma economia que deve funcionar livremente
conforme as leis do mercado. Este discurso surge para (re)legitimar as desigualdades de sua matriz, dado que fun-
dadas na propriedade privada, excludente por definição (um é proprietário enquanto os outros não) e na liberdade
de contratar. O discurso de clara estrutura religiosa, da fé no mercado, neutraliza a ‘justiça da desigualdade’, carro
chefe e latente do discurso neoliberal da ‘igualdade’. Conta, também, com sua ‘Inquisição’, ou seja, seu braço armado
que se encarrega de ‘excluir’ os dissidentes, os ‘hereges’, como bem demonstra Naomi Klein. Com efeito, Hayek é
um autor extremamente sedutor no encadeamento lógico de suas proposições. Coloca a concepção de ‘liberdade
individual’ como significante primeiro para depois deslizar nos significantes sem perder este princípio, verdadeiro
dogma. A noção manipulada de ‘liberdade’ irá permear toda sua construção teórica de ‘ordem espontânea’, via mer-
cado”.
MORAIS DA ROSA, Alexandre. “Crítica ao discurso da
Law and Economics.
A exceção econômica do direito”
in
MORAIS DA ROSA, Alexandre. LINHARES, José Manuel Aroso.
Diálogos com a Law & Economics
. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 39.
3 Cf. HAYEK, Friedrich.
Direito
,
Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e
economia política.
Trad. Ana Maria Capovilla
et al.
São Paulo: Visão, 1985, p. 36 e seguintes.