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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 291 - 305, jan - fev. 2015

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hipóteses em que se permite as abordagens com a respectiva busca pes-

soal (artigos 240 e 244 do Código de Processo Penal), sem falar na plêiade

de direitos e garantias fundamentais constantes dos tratados e convenções

internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

As normas que exsurgem desses referidos direitos e garantias fun-

damentais foram suspensas e perderam sua “força de lei”, deixando de

ser aplicadas à população em situação de rua, ao passo que a anacrônica

e caduca norma que determina a punição criminal da vadiagem, presente

no artigo 59 do Decreto-lei 3.688/41, editado sob a égide do Estado Novo,

em claro desuso, ressurgiu com força total e passou a ser largamente apli-

cada, não obstante sua clarividente incompatibilidade com a Constituição

da República em vigor e a própria ordem democrática:

16

“[O estado de

exceção] define um ‘estado de lei’ em que, de um lado, a norma está em

vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro lado, atos

que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’. (...) O estado de exceção é

um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei

(que deveria, portanto, ser escrita: força de lei)”.

17

Com o estado de emergência, as pessoas em situação de rua foram

abandonadas pela lei, permitindo-se que inúmeras violências e abusos fos-

sem perpetrados tanto por agentes públicos quanto por agentes de segu-

rança privada contratados por comerciantes,

18

o que explica o desapareci-

16 Diz o dispositivo: “Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter

renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses. Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure

ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”. Em rápido exame, percebe-se que somente o pobre,

aquele que não tem renda, pode ser contraventor, o que fere gravemente o princípio da isonomia. Além disso, o tipo

penal viola o princípio da secularização ao tutelar como bem jurídico a moral que valoriza o trabalho, assim como as

próprias garantias da intimidade e da liberdade de expressão, ao não tolerar um projeto existencial que não guarde

compatibilidade com a atividade laboral ou com o acúmulo de dinheiro. Em termos criminológicos, Nilo Batista explica

que “historicamente o capitalismo recorreu ao sistema penal para duas operações essenciais: 1a garantir mão de obra;

2a impedir a cessação do trabalho. Para garantir a mão de obra, criminalizava-se o pobre que não se convertesse em tra-

balhador. (…) Com a revolução industrial, o esquema jurídico ganhou feições mais nítidas: criou-se o delito de vadiagem.

Referindo-se à reforma dos dispositivos conhecidos como

Poor Law

, em 1834, Disraeli dizia que na Inglaterra ser pobre

passava a ser crime. Aqueles que, por uma razão ou outra, se recusavam ou não conseguiam vender sua força de traba-

lho, passaram a ser tratados pela justiça mais ou menos como nos julgamentos descritos por Jack London em seu conto

autobiográfico: a cada 15 segundos, uma sentença de 30 dias de prisão para cada vagabundo”. BATISTA, Nilo.

Punidos e

mal pagos:

violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de janeiro: Revan, 1990, p. 35.

17 AGAMBEN,

op. cit

., 2004, p. 61. “A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da

norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que está excluído não está, por causa disto,

absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da

suspensão.

A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta

. O estado de exceção não é, portanto, o

caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramen-

te, segundo o étimo,

capturada fora

(

ex-capere

) e não simplesmente excluída”. AGAMBEN, Giorgio.

Homo sacer

: o

poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 25.

18 Nas diligências realizadas, algumas pessoas em situação de rua relataram-nos terem sofrido agressões físicas,

que caracterizariam até mesmo tortura, dentro de conhecidos estabelecimentos comerciais da cidade, mas, por

medo, recusaram-se a formalizar as denúncias.