

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 291 - 305, jan - fev. 2015
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ritários através de um “uso libertário do direito”, por meio da expedição
de salvos-condutos aos pacientes e outras eventuais pessoas em situação
de rua, a fim de que não fossem acossados, intimidados e violentados por
agentes públicos sob o pretexto de que estariam incorrendo na prática da
inconstitucional contravenção penal de vadiagem, garantindo-lhes o direi-
to de ir, vir e permanecer, a qualquer hora do dia, em locais públicos de
uso comum do povo, não podendo ser removidos contra sua vontade, bem
como o trancamento dos procedimentos criminais decorrentes de termos
circunstanciados para apuração da contravenção penal de vadiagem.
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Em outras palavras, em nome do direito, a Defensoria Pública se
contrapôs aos horrores que estavam sendo cometidos, paradoxalmente,
em nome do próprio direito. Com efeito, ante a dessubjetivação, des-
truição e destituição do sujeito realizada pelo aparelho repressor do
estado ao estabelecer àqueles que não compactuam com as regras do
jogo da sociedade de mercado a
impossibilidade
de viver nas ruas e de
pedir esmolas, e criar a
necessidade
de viver de acordo com a moral
laboral por meio do consumo de bens através do trabalho ou dos rendi-
mentos advindos do acúmulo de dinheiro, a Defensoria Pública buscou
ativar os operadores da subjetivação, quais sejam, a
possibilidade
e a
contingência
, de acordo com os quais o sujeito
pode ser
e
pode não
ser
,
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conforme o projeto de vida que lhe aprouver.
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carro da polícia por perto vou saindo de fininho, finjo que não é comigo. Para não ser enquadrado, justamente, por
vadiagem”. “O ramo da mendicância”.
Comércio da Franca
. 09 de junho de 2012. É de se destacar, outrossim, que
com a repercussão nacional do caso, a atuação da Defensoria Pública foi elogiada por jornalistas em programas de
rádio de alcance nacional, assim como em telejornais de emissoras de televisão regionais. Digna de nota, ademais, é
a moção de apoio do Conselho Municipal de Assistência Social, expedida em 05 de junho de 2012.
22 “O que abre uma passagem para a justiça não é a anulação, mas a desativação e a inatividade do direito – ou seja,
um outro uso dele”. AGAMBEN, 2004, p. 98.
23 “As categorias modais – possibilidade, impossibilidade, contingência e necessidade – (…) são operadores ontológicos,
isto é, as armas devastadoras com que se combate a gigantomaquia biopolítica pelo ser, e se decide, de cada vez, sobre
o humano e sobre o inumano, sobre um ‘fazer viver’ ou um ‘deixar morrer’. (…) Possibilidade (poder ser) e contingência
(poder não ser) são os operadores da subjetivação, do ponto em que um possível chega à existência, se dá por meio da
relação com uma impossibilidade. A impossibilidade, como negação da possibilidade [não (poder ser)], e a necessidade,
como negação da contingência [não (poder não ser)], são operadores da dessubjetivação, da destruição e da destituição
do sujeito, ou seja, dos processos que nele estabelecema divisão entre potência e impotência, entre possível e impossível.
(…) O sujeito é, sobretudo, o campo de forças sempre já atravessado pelas correntes incandescentes e historicamente
determinadas da potência e da impotência, do poder não ser e do não poder não ser”. AGAMBEN, 2008, p. 147-148.
24 Nesse sentido, argumentou o defensor público Antonio Machado Neto: “A gente não pode achar que o único pro-
jeto de vida que seja legítimo, e de acordo com uma ótica moralizante, seja aquele voltado ao trabalho. A pessoa que
queira se dedicar ao ócio tem que ser respeitada”.
Comércio da Franca.
“Justiça nega
habeas corpus
para pedintes”.
1
o
junho de 2012. Ademais, de acordo com o professor de filosofia do direito da Universidade de Sevilha, em correio
eletrônico no qual, generosamente, teceu comentários sobre o presente texto, há que se questionar também a
cultura de trabalho do capitalismo, que o reduz a trabalho assalariado e dependente do capital:
“No solo hay ocio
frente al trabajo dependiente y asalariado, sino también otros modos y tipos de trabajo o acciones humanas con las
que se satisfacen las necesidades humanas que no se pueden expresar solo desde el capitalismo”
.