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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 291 - 305, jan - fev. 2015

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Manifestação desse fenômeno teve curso na cidade de Franca, loca-

lizada na região nordeste do estado de São Paulo, no ano de 2012, quando

autoridades dos poderes constituídos com atuação local debruçaram-se

sobre o problema da população em situação de rua da cidade.

É importante registrar, desde já, na esteira das lições de Paul Ricou-

er, que o exercício da memória é uma luta contra o esquecimento e seu

uso mobiliza inelutavelmente o caráter seletivo da narrativa, na medida

em que é impossível lembrar de tudo, assim como é impossível narrar

tudo. Desse modo, pela necessária mediação narrativa, que sempre per-

mite que se narre de outro modo, com supressão e deslocamento de ên-

fases, reconfiguração diferente dos protagonistas da ação e dos próprios

contornos dela, os usos da memória são passíveis de abusos, vale dizer,

manipulação concertada da memória e do esquecimento pelos detento-

res do poder, que promovem uma autêntica ideologização da memória,

prevalecendo-se da sua vulnerabilidade fundamental, que resulta da au-

sência da coisa lembrada e sua presença na forma de representação.

4

Como os fatos que irão se narrar no presente ensaio correm riscos

de sofrerem “abusos de esquecimento”, seu registro integra o dever ético-

-político de exercer a memória, que nada mais é do que o dever de fazer

justiça: “O dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a

um outro que não o si (...) Somos devedores de parte do que somos aos

que nos precederam. O dever de memória não se limita a guardar o rastro

material, escrito ou outro, dos fatos acabados, mas entretém o sentimen-

to de dever a outros (...) dentre esses outros com quem estamos endivida-

dos, uma prioridade moral cabe às vitimas (...) A vítima em questão aqui

é a vítima outra, outra que não nós”.

5

As vítimas da história que ora se relata são as pessoas que estive-

ram em situação de rua na cidade de Franca durante o primeiro semestre

de 2012. Para elas, o exercício da lembrança se torna mais difícil e a possi-

bilidade do esquecimento do drama que viveram por meio dos abusos de

memória com o intento do esquecimento promovidos pelos detentores

do poder torna-se ainda maior porque são pobres, conforme constatara

Albert Camus em seu romance autobiográfico inacabado

O primeiro ho-

mem

: “A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a

dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que

4 Cf. RICOUER, Paul.

A memória, a história e o esquecimento

. Trad. Alain François. Campinas: Unicamp, 2007, p.

72, 94, 98, 455.

5 Ibid., p. 101-102.