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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 291 - 305, jan - fev. 2015

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eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos

de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor. (...) Só os ricos

podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca ape-

nas os vagos vestígios do caminho da morte”.

6

Por se tratar o presente ensaio de um verdadeiro testemunho, é

importante esclarecer, na esteira das lições de Agamben, que em latim

há dois termos para representar a testemunha: “

testis

, de que deriva o

nosso termo testemunha, significa etimologicamente aquele que se põe

como terceiro (

terstis

) em um processo ou em um litígio entre dois con-

tendores”, e

superstes

, “... que indica aquele que viveu algo, atravessou

até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso”.

7

Eviden-

temente, por participar do litígio, na condição de membro da Defensoria

Pública do Estado de São Paulo, ao lado das pessoas em situação de rua,

conforme se verá a seguir, não podemos assumir a posição de um terceiro

(

testis

), mas sim a de supérstite, muito embora não tenhamos vivido o

evento como eles viveram-no, não se olvidando que “não existe, em sen-

tido próprio, um sujeito do testemunho”, já que “sujeito do testemunho é

quem dá testemunho de uma dessubjetivação”, na medida em que “todo

testemunho é um processo ou um campo de forças percorrido sem cessar

por correntes de subjetivação e dessubjetivação”.

8

A dessubjetivação levada a cabo contra cerca de 80 pessoas em si-

tuação de rua em Franca

9

se deu através de uma ação articulada entre

alguns representantes do judiciário local, da polícia militar, da secretaria

de ação social do município, contando com o beneplácito, ou melhor, vi-

goroso estímulo, da imprensa local.

6 CAMUS, Albert.

O primeiro homem

. Trad. Teresa da Fonseca e Maria Luiza Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2005, p. 11.

7 AGAMBEN, Giorgio.

O que resta de Auschwitz

: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo:

Boitempo, 2008, p. 27.

8 Giorgio Agamben chega a essas conclusões após analisar a fenomenologia do testemunho em Primo Levi, a im-

possível dialética entre o sobrevivente e o “muçulmano” (“morto vivo”, “cadáver ambulante”, “homem-múmia”,

“presença sem rosto” de Auschwitz, cuja degradação pelo poder biopolítico coloca-o no umbral entre o homem e

o não-homem), a pseudo testemunha e a “testemunha integral”, o homem e o não homem: “O testemunho apre-

senta-se no caso como um processo que envolve pelo menos dois sujeitos: o primeiro é o sobrevivente, que pode

falar, mas que não tem nada de interessante a dizer; e o segundo é quem “viu a Górgona”, quem “tocou o fundo” e

tem, por isso, muito a dizer, mas não pode falar. Qual dos dois dá testemunho?

Quem é o sujeito do testemunho

?”.

AGAMBEN,

op. cit

., 2008, p. 123-124.

9 Em 2005, através de pesquisa realizada pela própria municipalidade de Franca junto a equipamentos sociais, foram

identificadas 73 pessoas em situação de rua. Em 2007, no contexto da “Pesquisa nacional sobre a população em situa-

ção de rua”, realizada em 71 municípios com mais de 300 mil habitantes em todo o Brasil, por iniciativa do Ministério

de Desenvolvimento Social e Combate à Fome juntamente com a UNESCO, foram identificadas 78 pessoas em situação

de rua, o que faria do município a décima cidade com o menor número de pessoas nessa situação por habitantes.