

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 291 - 305, jan - fev. 2015
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de Deus no século XIX, revelando-se, pois, incapaz de compreender o anti-
-herói Meursault, cujas desventuras levam-no a matar um árabe por causa
do sol, mas pode ser invocada para definir o sistema de justiça mesmo
após a reconstrução dos direitos humanos, a independência política das
colônias e a prevalência do regime democrático de governo no ocidente.
Com efeito, a justiça mostra-se, às vezes, desvairada, sobretudo
quando se imiscui em questões ético-politicas atinentes às contradições
que exsurgem do sistema-mundo capitalista e obliteram, de certa forma,
o regular funcionamento da ordem social, reproduzindo práticas e ativan-
do dispositivos típicos de sistemas políticos autoritários, não raras vezes
com inconfundível viés fascista, cuja violência resta dissimulada e legiti-
mada, todavia, pela forma da democracia em que se erigem os contem-
porâneos Estados de Direito.
Não por outra razão, o filósofo italiano Giorgio Agamben demonstra
que “... a criação voluntária de umestado de emergência permanente (ainda
que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das
práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive democráticos”,
de modo que “... o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar
como paradigma de governo dominante na política contemporânea”.
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Diferentemente do estado de defesa ou de sítio, o eclipse dos direi-
tos fundamentais no estado de exceção ocorre sem a sua suspensão formal,
durante a normalidade constitucional, legitimado pelo verniz da legalidade.
Muito embora sua instauração se dê, normalmente, pelo chefe do poder
executivo através da edição de atos e decretos com força de lei, como na
famigerada “military order”, promulgada por George W. Bush em 13 de no-
vembro de 2001, que permite o processo perante comissões militares e a
prisão por tempo indeterminado em Guantánamo, a despeito da constitui-
ção e do controle do judiciário, de não cidadãos suspeitos de envolvimento
em atividades terroristas, anulando-se o estatuto jurídico do indivíduo e,
com isso, criando-se um ser jurídico inominável e inclassificável cuja situa-
ção jurídica somente é comparável àquela dos judeus nos
Lager
nazistas,
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o fenômeno tende a se pulverizar por todo o globo, reproduzindo-se ca-
pilarmente em todo o aparelho de Estado, inclusive no judiciário, o qual,
ironicamente, tem por função zelar pela supremacia da contituição e pela
garantia dos direitos humanos fundamentais dos cidadãos.
2 AGAMBEN, Giorgio.
Estado de exceção.
Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13.
3 Ibid., p. 14.