

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 264 - 275, jan - fev. 2015
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rantias e favores, que a repressão terá de ser deficiente, decorrendo dahi
um indirecto estimulo á criminalidade. Urgia abolir semelhante criterio
de primado do interesse do individuo sobre o da tutela social”. Parado-
xalmente, num esforço de legitimação do sistema processual emprega-
do, apregoa que “si, por um lado, os dispositivos do projecto tendem a
fortalecer e prestigiar a actividade do Estado, na sua funcção repressiva,
é certo, porém, que asseguram, com muito mais sinceridade do que a
legislação actual, a defesa dos acusados”.
17-18
A comissão nomeada por Francisco Campos era constituída por im-
portantes juristas daquele período: Nelson Hungria, Roberto Lyra, Cân-
dido Mendes de Almeida, Viera Braga, Florêncio de Abreu e Narcélio de
Queiroz. O resultado foi um código que representava os ideais políticos
vigentes ao Estado Novo, declaradamente autoritário e fundado num
pretenso pensamento “popular-democrático”. A base foi o
Codice Rocco
de processo penal (1930), da Itália fascista de Mussolini, da qual Alfredo
Rocco era Ministro da Justiça. Diante da incumbência de reformar a legis-
lação penal e processual penal segundo os princípios autoritários, Rocco
concede a Vincenzo Manzini, principalmente, a missão de redigir o
codice
di procedura penale
, que só fez agravar a natureza inquisitória dos códigos
processuais anteriores, já inseridos na lógica “mista” napoleônica.
19
17 CAMPOS, F.
O Estado Nacional...
Op. cit
., p. 128 (Redação original mantida). No tocante à reforma do Código
Penal, o mesmo autor declara que “o principio cardeal que inspira a lei projectada e que é, aliás, o principio fun-
damental do moderno direito penal, é o da defesa social. É necessário defender a communhão social contra todos
aquelles que se mostram perigosos á sua segurança” (
Id. Ibid
., p. 132-3.
18 Num paralelo possível com a literatura inglesa, note-se que é a própria estrutura do
duplipensar (doublethink)
orwelliano em ação, a justificar um ato autoritário. Em sua indefectível novela intitulada “1984”, George Orwell des-
creve seu futurista modelo de estado autoritário, regido por diversos princípios entre os quais se encontra o
dupli-
pensar
, como a capacidade de apreender duas ideias contraditórias e aceitá-las ambas. Nas palavras do próprio au-
tor: “Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas,
defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas;
usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia
e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória
prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao
processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente
do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar
o duplipensar (ORWELL, George.
Nineteen Eight-Four
. Londres: Martin Secker & Warburg, 1949, p. 32. [Tradução
livre de: “
To know and not to know, to be conscious of complete truthfulness while telling carefully constructed lies,
to hold simultaneously two opinions which cancelled out, knowing them to be contradictory and believing in both of
them, to use logic against logic, to repudiate morality while laying claim to it, to believe that democracy was impos-
sible and that the Party was the guardian of democracy, to forget, whatever it was necessary to forget, then to draw
it back into memory again at the moment when it was needed, and then promptly to forget it again, and above all, to
apply the same process to the process itself -- that was the ultimate subtlety; consciously to induce unconsciousness,
and then, once again, to become unconscious of the act of hypnosis you had just performed. Even to understand the
word ‘doublethink’ involved the use of doublethink”
].
19 Segundo Renzo ORLANDI,
“venata di maggior autoritarismo appariva la riforma processuale. Essa confermava la
scelta del modello misto di matrice napoleonica, già caratteristica delle previgenti codificazioni del 1865 e del 1913,