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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015

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cadinho ubuesco de poder

24

) apresenta-se a quem normalmente não lhe

escapa: vida nua, incluída pela exclusão. Acostumados, ademais, com a

docilização da identidade brasileira, aparece agora o imperativo do “pro-

testo sem protesto”, tolerado apenas se apaziguado (quem sabe em al-

gum sambódromo para que as imagens possam ser filtradas com maior

precisão como um espetáculo carnavalesco reconfortante de consenso).

“Sem violência!”, bradaram alguns incautos ingênuos a retroalimentar

aquilo que os devora cotidianamente, amor ao censor que ajuda infa-

livelmente o pensamento rasteiro a reproduzir a separação interior en-

tre pacíficos e baderneiros, sempre a serviço da reposição da ordem.

Manifestações pacíficas, é claro, nada que influa na rotina adestrada

de cada um (mesmo que profundamente arbitrária). Paz, mesmo que

ela reverbere como o silêncio de algum cemitério. Do contrário, apenas

há espaço para os “vândalos”, cantilena entoada como um mantra pela

grande mídia, como que para exorcizar qualquer ruído de fundo, borrar

qualquer sentido – a rigor, no fundo, acólito radical do acovardamento

e dos discursos de medo e de estagnação que pairam na evitação do

conflito em favor de uma passividade sem sentido.

Mal de Polícia

Talvez uma lição inequívoca desencadeada por este novo cenário

de (auto)compreensão social, para além de uma mera e já sabida crise de

confiança nas polícias

25

, possa ser, muito mais profundo que isto, o ponto

de difração indicado pela

entrada definitiva da soberania na imagem da

24 Ubu é, segundo Foucault, o exercício do poder através da desqualificação explícita de quem o exerce, quer dizer, o

grotesto político da personagem ubu é a sua anulação pelo próprio ritual que manifesta este poder. Em resumo, ela só

pode exercer o terrível poder que lhe pedem por meio de um discurso infantil, que precisamente o desqualifica daquilo

porquê o convocaram. Trata-se da peculiaridade e da incontornabilidade da administração moderna, “a inevitabilidade

do poder, que pode precisamente funcionar com todo o seu rigor e na ponta extrema da sua racionalidade violenta,

mesmo quando está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado.” Ver FOUCAULT, Michel.

Os Anormais

: curso no

Collège de France (1974-1975). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 17 e 45.

25 Segundo o

Índice de Confiança na Justiça Brasileira

(ICJBrasil) realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), para

o 1º semestre de 2013, e publicado no 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 70,1% da população não confia no

trabalho das diversas polícias do país (ALCADIPANI, Rafael. “Respeito e (Des)Confiança na Polícia”

. In:

LIMA, Renato

Sérgio de; BUENO, Samira (coords.).

Anuário Brasileiro de Segurança Pública

. Ano 7. São Paulo: 2013, p. 106-8, dis-

ponível em

www.forumseguranca.org.br)

. Apesar de se aludir que tal levantamento possa ter absorvido o impacto

decorrente dos manifestos de junho, tal sentido é reiterado por outros dados. A Pesquisa Nacional de Vitimização

com levantamento em 346 municípios, entre junho de 2010 e outubro de 2012, aponta na mesma direção: a por-

centagem de pessoas que “não confiam muito” na Polícia Militar é de 82% e na Polícia Civil é de 83,4% (disponível

em

http://www.justica.gov.br/portal/ministerio-da-justica/

).