

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015
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o único a manifestar o princípio benjaminiano de que há “um elemento de
podridão dentro do direito” (
etwas Morsches im Recht
).
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Para que se leve
minimamente a termo uma crítica à violência, fundadora e conservadora
do direito, não se deve perder tal momento de
decisão excepcional
, alu-
cinante e espectral ao mesmo tempo, que borra a distinção entre as duas
violências,
44
contaminação necessariamente testemunhada precisamente
pela moderna instituição da
polícia
45
– (sempre pronta a lembrarmo-nos,
a rigor, de ser meio da possibilidade da pena de morte).
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O conceito de
violência, ao perpassar o direito, a política ou a moral,
de-põe
sobre todas
as formas de autorização, e encontra espaço de “mistura (...) espectral”
47
,
de fato, violência que funda e violência que conserva o direito – como se
uma violência obsessivamente convocasse a outra – na figura policial. In-
vestida, diga-se logo, muito para além dos seus agentes (uniformizados ou
não) sob uma estrutura (civil ou não) de modelo militar, não somente nas
representações instituídas, “a polícia não é só a polícia”, mas constitui-
-se como “índice de uma violência fantasmática”, ou seja, possibilidade
perene que coloniza coextensivamente a política, excede e a transborda:
“a polícia está presente ou está representada ali onde haja força de lei.”
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Um “mal de polícia”, se é que tal se pode dizer, não é apreensível
senão desde este assombro, presença (i)legível ao mesmo tempo de um
poder amorfo com aparição onipresente sem nenhuma essência. O es-
pectro sobre o qual ambas as violências
de-põem
suas fronteiras reside
no fato de que tal corpo não está jamais presente por si, mas aparece fa-
zendo desaparecer aquilo que representaria. “A infâmia desta instituição”,
dirá Benjamin, “consiste em que ali se encontra suspensa a separação en-
43 BENJAMIN, Walter. “Crítica da Violência – Crítica do Poder”, p. 166.
44 DERRIDA, Jacques.
Force de Loi
: “Fondement Mystique de l´Autorité”, p. 1000 e 1002.
45 De fundamental importância para o exercício do poder punitivo, é cediço que a moderna instituição da agência
policial surge dada a concentração urbana que começou fazer coexistir as maiores riquezas com as piores misérias
entre os últimos tempos dos Bourbon na França e o começo do XIX na Inglaterra. Com a função colonialista transpor-
tada e adaptada às metrópoles (afinal, os delinquentes eram degenerados semelhantes aos selvagens colonizados) e
tornada chave na vida urbana (convocada, pois, a neutralizar as “classes perigosas”, ou seja, “
obreiros não inteligentes
nem trabalhadores
” – termo de H.-A. Frégier em obra precursora e premiada em concurso pela
Académie des Sciences
Morales et Politiques do Institut de France
em 1838: cf. FREGIÉR, Honoré-Antoine.
Des classes dangereuses de la po-
pulation dans les grandes villes, et des moyens de les rendre meilleures.
Paris: J.-B. Baillière, Libraire de L´Académie
Royale de Médecine, 1840, p. v-x), a Polícia, porém, como assevera Zaffaroni, carecia de um discurso próprio. Quem
irá proporcionar tal força será a corporação médica: “os médicos detinham um discurso sem poder e os policiais poder
sem discurso, a aliança de ambos foi o que deu resultado ao positivismo criminológico biologista.” (ZAFFARONI, Euge-
nio. Raul.
La palabra de los muertos
: Conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 95).
46 DERRIDA, Jacques.
Force de Loi:
“Fondement Mystique de l´Autorité”, p. 1012.
47 BENJAMIN, Walter. “Crítica da Violência – Crítica do Poder”, p. 166.
48 DERRIDA, Jacques.
Force de Loi:
“Fondement Mystique de l´Autorité”, p. 1008 e 1010.