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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015

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democracia, para então que se possa, em alguma medida, identificar não

apenas traços de continuidade óbvios autoritários (como a militarização

das nossas polícias, por exemplo), mas surpreender plataformas e perfor-

mances únicas nestas mesmas circunstâncias, ou seja, transformações e

novas propriedades agravadas de sua própria atuação agora sob a cara-

puça democrática. Dizer que tal exercício de bipoder não é novo, como no

caso da prática violenta das polícias militares, por um lado, não elide de

maneira alguma a reflexão sobre as novidades inauditas em configurações

deste biopoder, radicalmente o oposto: a responsabilidade nos impõe in-

terrogá-las incessantemente tornando desnecessário enfrentá-lo; por ou-

tro viés, nada significa que se desconheçam as vertentes mais profundas

de certa governabilidade como esta. Muito pelo contrário. Estudiosos da

transição política talvez tenham ainda pouco atentado para a gestão deste

excesso: em suma, para além daquilo que se manteve, quer seja institu-

cionalmente, quer seja nas práticas brutais, sobretudo, cabe pensar sobre

aquilo que se incrementou dos fascismos policiais agora sob o manto de-

mocrático. Como gerir esta violência cotidiana passa por interrogar este

substrato cultural inédito mergulhado num sintoma que continua a pairar

no presente como legado.

Se a cidade, como vemos diuturnamente, expõe a militarização da

vida sob a forma hipertrofiada da dimensão vigilante-repressiva-punitivis-

ta do Estado, isto não pode ser escondido no anonimato das estruturas de

poder, historicamente neutralizadas. Há, portanto, a necessidade de fugir

de certa neurose sistêmica, irmã siamesa da naturalização da repressão

policial, que torna a brutalidade mera decisão técnica e os sujeitos seus

meros “cumpridores de ordens”, situação geradora de um “sistema dia-

bólico” que ninguém mais responde por si. São estes mesmos automatis-

mos, administradores da vida e que atravessam nossos corpos, exatamen-

te o âmago de uma

biopolítica

21

– poder que se exerce sobre a população,

21 De longa e profunda genealogia, a noção de “biopolítica” não é uma categoria de fácil apreensão, porém há uma

matriz conceitual com múltiplos sentidos. Sendo assim, desde logo, pode entender o conceito de “biopoder” como:

“el conjunto de mecanismos por medio de los cuales aquello que, en la especie humana, constituye sus rasgos bio-

lógicos fundamentales podrá ser parte de una política, una estrategia política, una estrategia general de poder; en

otras palabras, cómo, a partir del siglo XVIII, la sociedad, las sociedades occidentales modernas, tomaron en cuenta

el hecho biológico fundamental de que el hombre constituye una especie humana.” (FOUCAULT, Michel.

Seguridad,

Territorio, Población

. Curso en el Collège de France (1977-1978). Edicción establecida por Michel Senellart, bajo

la dirección de François Ewald y Alessandro Fontana. Traducido por Horacio Pons. Buenos Aires: Fondo de Cultura

Económica, 2006, p. 15). Noutros termos, é a politização da vida que captura o humano, sobremaneira a partir da

modernidade, e indica o início de uma ambivalência: a vida tanto como sujeito quanto objeto da política. Desde o

primeiro emprego do termo “biopolítica” por Rudolf Kjellén na década de 20 do século passado, conforme Edgar-

do Castro menciona, importa destacar duas etapas para aquilo que se compreende como o desenvolvimento da

“biopolítica”. Numa primeira fase o termo faz referência a uma concepção da sociedade, de Estado e da política em