

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015
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Aferrar-se, outrossim, aos dados de realidade da violência criminal
é ir muito além das cifras
28
sobre as quais repousam não apenas os corpos,
mas requer tocar as palavras dos mortos pelo sistema penal. Cadáveres si-
lenciados e adiados, como assevera Zaffaroni
29
, não apenas pelos limites
epistemológicos de certa criminologia acadêmica que apenas incorpora a
deprimente visibilidade midiática e seus curandeiros (ou negocia promís-
cua e consensualmente com eles entorno de hegemonias contingenciais),
calando a urgente concretude cadavérica operada por um poder “exerci-
toforme”. Se é da (im)possibilidade de narrar Auschwitz como catástrofe
prototípica
30
que deve advir o dever simultâneo de se extrair a expressão
mais aguda de uma matriz racional
31
, é porque, em termos genocidas, não
podemos esquecer jamais que isto foi realizado por
forças de polícia
32
. A
“solução final”, deste ponto de vista, nunca deixou de ser, a sua vez, além de
uma decisão histórico-política estampada na Conferência de Wannsee em
janeiro de 1942, como assevera Derrida, uma “decisão de polícia, de polícia
civil e de polícia militar, sem que se possa jamais discernir entre as duas.”
33
No excesso do trauma deste evento-limite é que se acomoda o
epicentro de uma realidade opaca, acontecimento de uma neutralidade
violenta e onipresente que choca, paralisa e engolfa aquilo que não se
reduz a sua razão bem pensante. Falar-se numa regressão da barbárie
não se trata meramente de uma ameaça nos dizeres de Adorno
34
, pois ela
“continuará existindo enquanto persistirem no que há de fundamental as
condições que geram esta regressão”. Genocídios são e continuarão a ser
28 Para falarmos de mortes com a interferência das polícias, apenas em 2012, houve 1.890 pessoas mortas em
confronto com policiais civis e militares em serviço. Dados estes que, mesmo subestimados, alcançam o número
estarrecedor de mais de 21.400 pessoas mortas em confronto com as polícias entre 2000 e 2012. Vide os dados
atualizados pelo 7º Forum Brasileiro de Segurança Pública (BUENO, Samira; CERQUEIRA, Daniel; LIMA, Renato Sérgio
de. “Sob fogo cruzado II: letalidade da ação policial”.
In:
LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira (coords.).
Anuário
Brasileiro de Segurança Pública
. Ano 7. São Paulo: 2013, p. 126.
29 Cf. ZAFFARONI, Eugenio. Raul.
La palabra de los muertos
: Conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires:
Ediar, 2011, p. 06-07.
30 SOUZA, Ricardo Timm de.
Justiça em seus Termos
– Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010, p. 07-18.
31 Cf. BAUMAN, Zigmunt.
Modernidade e Holocausto
. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998, p. 37.
32 Cf. o minucioso relato clássico da organização metódica da operação de polícia levada a cabo pelo Terceiro Reich
na Shoah em ARENDT, Hannah.
Eichmman em Jerusalém.
Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
33 Utilizaremos a versão bilíngue (francês-inglês) publicada em: DERRIDA, Jacques.
Force de Loi:
“Fondement Mys-
tique de l´Autorité”.
In:
Cardozo Law Review.
Translated by Mary Quaintance. New York. V. 11 (July/Aug. 1990),
Numbers 5-6 , p. 919-1045 (cit., p. 1041).
34 ADORNO, Theodor W.. “Educação após Auschwitz”.
In
:
Educação e Emancipação
. Tradução de Wolfgang Leo
Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 119.