Background Image
Previous Page  133 / 590 Next Page
Basic version Information
Show Menu
Previous Page 133 / 590 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015

133

Aferrar-se, outrossim, aos dados de realidade da violência criminal

é ir muito além das cifras

28

sobre as quais repousam não apenas os corpos,

mas requer tocar as palavras dos mortos pelo sistema penal. Cadáveres si-

lenciados e adiados, como assevera Zaffaroni

29

, não apenas pelos limites

epistemológicos de certa criminologia acadêmica que apenas incorpora a

deprimente visibilidade midiática e seus curandeiros (ou negocia promís-

cua e consensualmente com eles entorno de hegemonias contingenciais),

calando a urgente concretude cadavérica operada por um poder “exerci-

toforme”. Se é da (im)possibilidade de narrar Auschwitz como catástrofe

prototípica

30

que deve advir o dever simultâneo de se extrair a expressão

mais aguda de uma matriz racional

31

, é porque, em termos genocidas, não

podemos esquecer jamais que isto foi realizado por

forças de polícia

32

. A

“solução final”, deste ponto de vista, nunca deixou de ser, a sua vez, além de

uma decisão histórico-política estampada na Conferência de Wannsee em

janeiro de 1942, como assevera Derrida, uma “decisão de polícia, de polícia

civil e de polícia militar, sem que se possa jamais discernir entre as duas.”

33

No excesso do trauma deste evento-limite é que se acomoda o

epicentro de uma realidade opaca, acontecimento de uma neutralidade

violenta e onipresente que choca, paralisa e engolfa aquilo que não se

reduz a sua razão bem pensante. Falar-se numa regressão da barbárie

não se trata meramente de uma ameaça nos dizeres de Adorno

34

, pois ela

“continuará existindo enquanto persistirem no que há de fundamental as

condições que geram esta regressão”. Genocídios são e continuarão a ser

28 Para falarmos de mortes com a interferência das polícias, apenas em 2012, houve 1.890 pessoas mortas em

confronto com policiais civis e militares em serviço. Dados estes que, mesmo subestimados, alcançam o número

estarrecedor de mais de 21.400 pessoas mortas em confronto com as polícias entre 2000 e 2012. Vide os dados

atualizados pelo 7º Forum Brasileiro de Segurança Pública (BUENO, Samira; CERQUEIRA, Daniel; LIMA, Renato Sérgio

de. “Sob fogo cruzado II: letalidade da ação policial”.

In:

LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira (coords.).

Anuário

Brasileiro de Segurança Pública

. Ano 7. São Paulo: 2013, p. 126.

29 Cf. ZAFFARONI, Eugenio. Raul.

La palabra de los muertos

: Conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires:

Ediar, 2011, p. 06-07.

30 SOUZA, Ricardo Timm de.

Justiça em seus Termos

– Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2010, p. 07-18.

31 Cf. BAUMAN, Zigmunt.

Modernidade e Holocausto

. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

1998, p. 37.

32 Cf. o minucioso relato clássico da organização metódica da operação de polícia levada a cabo pelo Terceiro Reich

na Shoah em ARENDT, Hannah.

Eichmman em Jerusalém.

Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia

das Letras, 1999.

33 Utilizaremos a versão bilíngue (francês-inglês) publicada em: DERRIDA, Jacques.

Force de Loi:

“Fondement Mys-

tique de l´Autorité”.

In:

Cardozo Law Review.

Translated by Mary Quaintance. New York. V. 11 (July/Aug. 1990),

Numbers 5-6 , p. 919-1045 (cit., p. 1041).

34 ADORNO, Theodor W.. “Educação após Auschwitz”.

In

:

Educação e Emancipação

. Tradução de Wolfgang Leo

Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 119.