

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015
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aparato policial ali montado na ditadura alguma responsabilidade sobre
os efeitos daí advindos, nem o necessário peso da reflexão acerca da des-
militarização das polícias hoje em pauta de debate, exatamente para que
na efervescência de um caldo totalitário que permanece a pulsar cotidia-
namente, particularmente nas práticas policiais, os refugos desta história
não restem emudecidos.
Assim percebe-se que tal estado obsceno da soberania política, o
qual a polícia opera e se encarrega de testemunhar com a maior clare-
za tal zona de indiferenciação entre violência e direito, não pode senão
comportar em si, a seu turno, a tradição de um modelo de combate ao
inimigo, potencializada pela contínua viabilização da guerra e do extermí-
nio de vulnerabilizados politicamente determinados. Assim é que a exce-
ção, inclusiva da vida através da sua própria suspensão, é transparecida
pelo
traço
que a decisão de uma
soberana polícia
apenas desnuda, e que
atualmente apenas demonstra o quanto espaços como estes são re-ter-
ritorializáveis, re-personificados e re-atualizáveis a qualquer momento e
em qualquer lugar.
Por certo que a decisão sobre a reestruturação da arquitetura ins-
titucional da segurança pública, em especial a sua desmilitarização, que
atualmente reingressam na pauta de discussões, tentam pôr em questão
este ponto nevrálgico, vide entre outros momentos, aqueles ancorados
pela tramitação da PEC nº 51
19
. Além da excêntrica divisão de tarefas e
a composição que remete à ideologia de segurança nacional, como dito,
esta cultura autoritária teve sua formatação
como aparelho de Estado
na
ditadura militar. Frise-se novamente que isso jamais quis dizer que o re-
gime golpista tenha inventado a violência institucional, mas sem dúvida
alguma a qualificou brutalmente como prática estatal contra seus oposi-
tores. Afirmar que pouco adiantaria pugnar pela questão da desmilita-
rização das polícias, ou diminuir o impacto sobre esta decisão – já que
tradicionalmente desde os “capitães-do-mato” a sociedade brasileira e
sua burocracia bacharelesca mantém a postura estamental privilegiada
dos donos do poder frente à neutralização de grande parcela da popula-
ção vulnerável –, em suma, se temos consciência disto é exatamente para
negar a manutenção de estruturas militarizadas e militarizantes que en-
vergam este poder e ter a capacidade de identificar o que nelas e a partir
delas foi transferido, transformado e mesmo inovado. Para dizer o menos,
19 De forma sucinta, cf. SOARES, Luiz Eduardo. “PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança públi-
ca”.
In:
Boletim
(Publicação oficial do IBCCRIM). Nº 252 (novembro), 2013, p. 3-5.