

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 119 - 141, jan - fev. 2015
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ensaiar
6
, distantes das tentações dos velhos esquemas, sobre e entre as
coisas mesmas –
intermezzo
. Escreveu Kafka
7
que “as coisas que me vêm
ao espírito não se apresentam por sua raiz, mas por um ponto qualquer
situado em seu meio”. Não é fácil perceber as coisas pelo meio. O conse-
lho do escritor tcheco segue: “tentem então retê-las, tentem então re-
ter um pedaço de erva que começa a crescer somente no meio da haste
e manter-se ao lado”. Viver a simultaneidade de
movimentos
(conceito
sobre o qual ainda voltaremos) que, para dizer o menos, são
reativos
(e
quais não são – sobretudo aqueles teimosos e impávidos a manter o es-
tado de violência naturalizada supostamente de forma pacífica, ou seja, a
sustentar o sistema capitalista funcionando normalmente?) tanto quanto
criativos
espaços de experimentação e expressões dos ativistas, locais de
tensão e de oposição
8
, é um convite ao constrangimento de lógicas uni-
tárias e a alguma intempestividade necessária ao apurado trato com o
contemporâneo
9
.
Esta cadeia metonímica disposta por magnetismos heterogêneos
de movimentos que podem representar a nu a obscenidade da porno-
grafia política
10
– informada, entre outros impulsos, tanto pela repulsa
do modelo representativo de uma democracia liberal perpassando até
mesmo o fulcro do rechaço ao modelo (teológico-)econômico
11
capita-
lista – aqui também permite ser surpreendida pelo
meio
, sem preten-
6 Cf. ADORNO, Theodor. “O ensaio como forma”.
In:
Notas de Literatura I.
Tradução Jorge M. B. de Almeida. São
Paulo: Duas cidades/Ed. 34, 2003, p. 27 ss..
7 KAFKA, Franz.
Diarios I (1910-1923)
. Edicción a cargo de Max Brod. Traducción de Feliu Formosa. Mexico: Tusquets
Editores, 1995, p. 04.
8 PLEYERS, Geoffrey.
Alter-Globalization:
Becoming Actors in the Global Age.
Cambridge: Polity, 2010, p. 185 ss.
9 AGAMBEN, Giorgio.
Che cos´è il contemporaneo?
Roma: Nottetempo, 2008, p. 8-9.
10 A ocupação da Câmara Municipal de Porto Alegre entre os dias 10 e 18 de julho de 2013 por manifestantes que
cobravam a criação do passe livre municipal para o transporte público, amplamente noticiada, que se puseram e
posaram nus nas dependências do legislativo do RS por si só já daria um extenso debate acerca da rebeldia diante
da real pornografia e obscenidade políticas a qual (não) nos afeta. Desde logo, caberá indagar, provocativamente ao
inverso, se o motivo de sermos convidados impávidos constantemente a avalizar, pacificamente, a crise de repre-
sentatividade de uma democracia não estará intimamente relacionado ao fato de termos perdido o real senso de
vergonha, na medida em que apenas conseguimos sustentar a sensação de afronta por uma tal nudez que nos impe-
le à reflexão? Perdemos o real sentido da vergonha, celebramos sua morte, e o testemunho disto é que tal imagem
do grupo de jovens e as reações, estas sim hipócritas e infantis, do senso comum justapostas pelos parlamentares
apenas endossam a suportabilidade da nudez Real (“o rei está nu”). A outrora nudez real dos jovens nos chama
à inconfessável cumplicidade, clama pela vergonha vergonhosa de nossa própria condição, convoca a confrontar
nosso cinismo diante do despudor de práticas coroídas dos próprios parlamentos que, como disse Benjamim, “per-
deram a consciência das forças revolucionárias às quais devem sua existência”. Longe de qualquer ojeriza à política,
ao contrário, é a sua dimensão radical a que se apela. Reflexão sobre a vergonha, pois. A virtuosa prática juvenil fez
revelar – não pornograficamente como pregam os moralistas das vergonhas políticas – e, sobretudo, afirmar de ma-
neira obscena a indecência política que de fato serve de anteparo, de ponto cego à sua profundidade escatológica.
11 AGAMBEN, Giorgio.
Il Regno e La Gloria:
Per uma genealogia teologica dell´economia e del governo
. Homo Sacer,
II, 2. Torino: Bollati Boringhieri, 2009.