

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 17, n. 66, p. 16 - 68, set - dez. 2014
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oriunda do autoritarismo – quando o indivíduo não tinha ou detinha pou-
cos direitos e compunha a classe de súditos ou servos do poder real ou do
formal-positivismo. Por suposto que a Administração se adstringe à legali-
dade. O patrimônio da Administração é indisponível, ou melhor, torna-se
disponível desde que atendidos os pressupostos de formalização dessa
disposição. Trata-se de um reflexo do caráter coletivo (porque estrutura
conjugadora de interesses conflitantes) do setor público.
Agora, o interesse público não pode continuar sendo colocado como
um dogma absoluto, como se a Administração tudo pudesse, na esteira da
sacralização de um conceito que de neutro não tinha nada – mas, cumpria
uma interessante função sistêmica: a manutenção do poder a quem dele
mesmo se alimentava. Um raciocínio automático e sem ressalvas sobre o
interesse público, e o liberal subjugo do interesse privado em benefício de
conceitos, nos conduziria a um retrocesso autofágico contra o sistema cons-
titucional dos direitos fundamentais. Deveras, a legalidade neoconstitucio-
nal se permeia à deontologia principiológica e aos valores axiologicamente
sistematizados a partir do norte da Constituição. Em decorrência, organizar
a supremacia do interesse público sobre o privado, como um axioma indis-
ponível e sem reflexão dinâmica, sem que se verifique que, no bojo dos aus-
pícios públicos, também se encontra a proteção das individualidades como
partes de um todo recíproco, significa legitimar pela via extroversa a formal-
-legalidade do liberalismo napoleônico, aquela legalidade que expressava
uma vontade suprema do legislador e desprezava a legitimação social da
essência dessa vontade (os fatores sociais de coesão).
Cada princípio tem o respectivo alcance resultante das limitações
recíprocas para suas autodeterminações, porque “eles recebem seu con-
teúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de com-
plementação e limitação”
77
. Entre o público e o privado, necessário inte-
ragir uma conexão funcional-estrutural. O mundo da cultura é solidário,
no qual todos os princípios devem conviver. Arrebatadora a síntese de
Humberto Ávila, ao repensar a supremacia do interesse público sobre o
privado não como axioma, mas postulado da unidade da reciprocidade de
interesses intersubjetivamente relacionados: Em vez de uma relação de
contradição entre os interesses privado e público há, em verdade, uma
conexão estrutural. Se eles – o interesse público e o privado – são concei-
tualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre outro fica prejudicada,
77 ÁVILA, Humberto Bergmann. "Repensando o 'princípio da supremacia do interesse público sobre o particular'”.
In
RDP
, 24/1998, p. 167.