

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 17, n. 66, p. 16 - 68, set - dez. 2014
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tes da revolução iluminista
‘the king can do no wrong’
, com a nova ordem
oitocentista
‘the Parliament can do anything’
.
Um exemplo abaliza o cenário. Os denominados poderes do Execu-
tivo, Legislativo e Judiciário seriam considerados órgãos estanques. Sequer
configurariam
funções
, para alguma dose de entendimento, mas,
poderes
mesmo, no talvegue da ideologia centralizadora oitocentista. Logo, pra-
ticamente tudo o que um desses
poderes
realiza, observando as mensa-
gens formais sobre a vigência de seus atos, não pode ser examinado pelo
outro órgão: uma lei que segue o processo legislativo, é absolutamente
válida; um ato administrativo que obedece a um procedimento, apesar de
aberrante em termos de razoabilidade, seria válido; uma decisão judicial
promanada por um juiz investido no cargo, torna-se automaticamente vá-
lida e irrefutável, a despeito dos escopos e fundamentos de justiça que o
julgador deva atender.
Isso existe? Na concepção oitocentista de alguma maneira legada
ao Brasil, esse prisma é o que impera, é o paradigma aparentemente
majoritário.
Defensores dessa ideologia esquecem – ou se homiziam em ceguei-
ra deliberada (
willfull blindness
) – do caráter dúctil das ciências humanas
atuais, mormente as ciências jurídicas. Também desprezam a relativa e
funcional divisão não de “poderes”, mas de “funções” estatais, a legislati-
va, a executiva e a judiciária
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, todas as quais devem cumprir a Constitui-
ção e em especial promover os direitos fundamentais
A legalidade é um princípio fundante do sistema jurídico, mas as-
sume contornos de juridicidade, que condiciona todas as manifestações
estatais – seja pelo intermédio do executivo, judiciário ou legislativo. Se a
Revolução Iluminista expressou a onipotência do legislador com base na
legalidade formal, o paradigma constitucional contemporâneo submete
as normas, as decisões, os procedimentos, enfim, ao paradigma dos di-
reitos fundamentais e dos valores expressos com o vigor normativo da
Constituição. Juridicidade é muito mais que legalidade da forma, porque
busca na ética da justiça a validade substancial das própria premissas.
A aplicação do art. 174 do CTN, a leitura do CPC e da LEF devem re-
tomar um cuidadoso zelo constitucional para a validade de suas regras. O
ordenamento jurídico deve obedecer as luzes que principiam e enfeixam
71 Ao referir Legislativo, Executivo e Judiciário em sentido clássico – como poderes –, utilizo a letra maiúscula;
quando escrevi com a letra minúscula, é no sentido contemporâneo, de legislativo, executivo e judiciário enquanto
funções estatais.