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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 137 - 160, Setembro/Dezembro. 2017
existencial para a escolha do modelo familiar correspondente à concepção
de vida boa do casal, a primazia do “ser” sobre o “ter” – decorrente da cen-
tralidade axiológica da dignidade humana em nosso ordenamento jurídico
26
– advoga fortemente a prevalência da segunda sobre a primeira.
As dúvidas que poderiam ainda remanescer são afastadas pela singela
constatação de que a garantia da concepção da liberdade quanto aos efeitos tem
como pressuposto a perpetuação de um tratamento francamente discrimina-
tório entre as entidades familiares fundadas no casamento e na união estável,
vulnerando o princípio constitucional da isonomia
27
. O transplante da anacrô-
nica supremacia do valor da liberdade sobre o da igualdade material (que tanto
marcou o pensamento liberal-burguês nos séculos XVIII e XIX) do campo eco-
nômico para a seara existencial representaria inaceitável retrocesso civilizatório,
incompatível com o caráter compromissório de nossa Constituição.
Destaque-se, por fim, que a liberdade para determinação dos efeitos
sucessórios viabilizada pela manutenção do regime legal previsto para a
união estável é muito mais aparente do que real. Isso porque o referido
regime integra a chamada sucessão legítima, enquanto o exercício da auto-
nomia privada no Direito Sucessório se dá principalmente no campo da
sucessão testamentária, ainda assim encontrando expressiva constrição no
instituto da legítima
28
. Portanto, havendo herdeiros necessários
29
, aplicar-
-se-ão quanto a eles as regras da sucessão legítima, infensas a qualquer
alteração por parte do testador
30
.
embora direcionada à disciplina da distribuição do patrimônio após a morte de seu titular, o interesse subjacente à escolha
do regime poderá, eventualmente, corresponder a concepções existenciais sobre o melhor meio de atender às necessida-
des dos diversos membros do grupo familiar, por exemplo.
26 Como ensina Maria Celina Bodin de Moraes: “o atual ordenamento jurídico, em vigor desde a promulgação da Cons-
tituição Federal de 5 de outubro de 1988, garante tutela especial e privilegiada a toda e qualquer pessoa humana, em suas
relações extrapatrimoniais, ao estabelecer como princípio fundamental, ao lado da soberania e da cidadania, a dignidade
humana. Como regra geral daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as relações privadas nas quais venha a ocorrer um
conflito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, a primeira deverá prevalecer,
obedecidos, dessa forma, os princípios constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como valor cardeal
do sistema” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”. In: BODIN DE
MORAES, Na Medida da Pessoa Humana, op. cit., p. 114).
27 A incidência do princípio da isonomia resultando na exigência de tratamento igualitário entre as entidades familiares derivadas
de distintos meios de formação é um aspecto teórico central da tese de inconstitucionalidade do artigo 1790 do CC. Deixou-se
de desenvolver o tema de forma mais profunda, de modo a privilegiar o enfoque da questão à luz do princípio da liberdade,
problema central deste trabalho, mas a questão da igualdade será retomada, ainda que brevemente, nos tópicos seguintes.
28 “Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.”
29 “Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.” Intensa é a polêmica sobre a
qualificação do companheiro como herdeiro necessário. Para uma explanação substanciosa sobre a questão, posicionando-
se pela condição de herdeiro necessário do companheiro sobrevivente: CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das
Sucessões. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2017. p. 469-475.
30 Na precisa síntese de Ana Carolina Brochado Teixeira e Anna Cristina de Carvalho Rettore: “A sucessão legítima,
portanto, é terreno da ordem pública, e não da autonomia privada” (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE,