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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 137 - 160, Setembro/Dezembro. 2017

que formam uma família vivem em união estável

17

, não parece que esta seja

a situação da maior parte dos companheiros.

Não é demais pontuar uma certa incoerência na ideia de que haveria

uma escolha pela união estável. É que, uma vez presentes seus requisitos

legais, estará formado o núcleo familiar, com todos os efeitos jurídicos que

dele decorrem, independentemente de qualquer manifestação de vontade

dos particulares nesse sentido. Trata-se, portanto, de verdadeiro ato-fato ju-

rídico, que a rigor não derivaria do exercício da autonomia privada pelos

integrantes da relação

18

.

É verdade que, no mundo dos fatos, muitas vezes há uma decisão pré-

via e refletida de viver em união estável, mas não se pode ignorar as situações

em que um mero namoro se transmude de forma espontânea, com o decurso

do tempo e o estreitamento do afeto, surgindo o ânimo de constituir famí-

lia, em uma união estável, sem que tenha havido uma escolha consciente do

casal

19

(e muito menos qualquer cogitação acerca de seus efeitos).

Nessa linha de intelecção, o grande equívoco do argumento parece ser

justamente a premissa assumida de que os efeitos jurídicos são um aspecto

relevante (senão o principal) da “opção” entre união estável e casamento.

Defende-se, assim, a liberdade do

sujeito de direito

abstrato – que toma

suas decisões com base apenas na razão, optando pelo arranjo familiar que

ofereça o regime jurídico mais conveniente quanto aos efeitos patrimoniais

produzidos – em detrimento da tutela da

pessoa humana

, cujas decisões são

influenciadas pelos mais diversos fatores, entre eles seus sentimentos e visões

de mundo, e que está concretamente inserida em uma sociedade na qual a

maioria das pessoas desconhece os meandros da lei

20

.

17 “Mais de um terço de uniões no país é consensual sem casamento, diz IBGE”. Disponível em:

<http://g1.globo.

com/brasil/noticia/2012/10/mais-de-um-terco-de-unioes-no-pais-e-consensual-sem-casamento-diz-ibge.html>. Acesso

em 23.04.2017.

18 “Por ser ato-fato jurídico (ou ato real), a união estável não necessita de qualquer manifestação de vontade para que

produza seus jurídicos efeitos. Basta sua configuração fática, para que haja incidência das normas constitucionais e legais

cogentes e supletivas e a relação fática converta-se em relação jurídica. Pode até ocorrer que a vontade manifestada ou

íntima de ambas as pessoas — ou de uma delas — seja a de jamais constituírem união estável; de terem apenas um rela-

cionamento afetivo sem repercussão jurídica e, ainda assim, decidir o Judiciário que a união estável existe” (LÔBO, Paulo.

Direito Civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 172).

19 Fenômeno sensivelmente captado por Anderson Schreiber: “A constituição da união estável é, quase sempre, progres-

siva, não podendo ser identificada em um momento singular, mas no crescente comprometimento dos envolvidos em

torno de um projeto comum, nascido, não raro, de forma inconsciente e silenciosa, mais na intimidade dos espíritos que

na solenidade das declarações” (SCHREIBER, Anderson. “Famílias Simultâneas e Redes Familiares”. In: SCHREIBER,

Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas. 2013. p. 302).

20 Sobre este movimento de transição do indivíduo abstrato à pessoa concreta, são eloquentes as palavras de Daniel

Sarmento: “Nesse novo contexto, o discurso sobre a dignidade humana também se modifica, incorporando uma dimen-

são social e relacional inafastável. Não se retorna à compreensão pré-moderna e estamental do ser humano como parte

subordinada ao todo social, mas tampouco se mantém a visão ‘insular’ de pessoa, alentada pelo discurso jurídico do libe-