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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 137 - 160, Setembro/Dezembro. 2017

surgir. Além da usual dificuldade envolvida na intepretação por leigos dos

preceitos legais, em razão do caráter técnico dos textos jurídicos, a ambigui-

dade na redação dos enunciados contidos nos artigos 1790 e 1829 enseja

intensas divergências na doutrina e na jurisprudência, criando um dificulta-

dor adicional para quem eventualmente desejar planejar sua sucessão

15

. Na

prática, portanto, apenas quem puder consultar um advogado especialista

será capaz de ponderar os efeitos sucessórios do modo de constituição de

família. Em nosso contexto social, essa não é uma possibilidade real para a

grande maioria da população.

Ademais, mesmo que a distinção de regimes seja do conhecimento

das partes (e que elas sejam capazes de compreendê-los), é possível que outros

fatores sejam considerados pelo casal como de maior peso nessa decisão.

Convicções político-filosóficas refratárias a exigências burocráticas ou mes-

mo à necessidade de chancela estatal a decisões afetivas podem ser decisivas

na opção do casal pela união estável, preponderando sobre as considerações

de ordem patrimonial.

Nessa linha, em um cenário normativo no qual o regime sucessório do

companheiro, de modo geral, é tão desfavorecido em relação ao do cônjuge

16

,

é mais plausível supor que os casais conhecedores do regramento legal optam

pela união estável

apesar

dos seus efeitos jurídicos, e não

em razão

deles.

Não se está a afirmar, insista-se, que não existam casais (em geral, pes-

soas de melhor condição econômica, com a possibilidade de consultar um

advogado para auxiliá-los nessa decisão) que escolham constituir suas famí-

lias em união estável justamente para se submeterem à disciplina do artigo

1790. Todavia, em uma realidade social na qual mais de um terço dos casais

15 “Daí a importância de que o Direito das Sucessões não crie obstáculos adicionais, exprimindo-se sempre por normas

claras e objetivas. Qualquer dúvida de interpretação dá margem ao surgimento de desacordos, que se mostram de difícil

solução em um momento em que os ânimos das partes se encontram à flor da pele, por força da perda dolorosa de

um ente querido, não raro o elemento unificador daquela família. O Código Civil brasileiro de 2002 desviou-se dessa

importante premissa, trazendo muitas normas de redação ambígua, que suscitam dúvidas para os intérpretes no campo

sucessório. (...) Cenários assim tão fragmentados, que poderiam se mostrar instigantes em outros campos do Direito,

revelam-se devastadores no campo das Sucessões, onde a ausência de uma diretriz clara acaba elevando a conflituosidade

post mortem

e dificultando mesmo a disposição dos bens em vida, tendo se tornado cada vez mais frequente na prática

advocatícia a elaboração de testamentos com cláusulas condicionadas à interpretação prevalente das normas jurídicas. O

Direito das Sucessões deixa, assim, de ser baliza, para se tornar complicador” (SCHREIBER, Anderson. Sucessão do

Companheiro no STF. Disponível em:

<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/sucessao-do-companheiro-

no-stf/ 17095>. Acesso em 16.06.2017).

16 Cite-se, para além da questão da ordem de vocação, o fato de o Código não reconhecer expressamente os companhei-

ros como herdeiros necessários (art. 1845) e a eles não estender o direito real de habitação (art. 1831). É verdade que algu-

mas dessas discriminações legais têm sido objeto de uma hermenêutica corretiva por parcela da doutrina (cf. Enunciado

117 da I Jornada de Direito Civil do CJF: “O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter

sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art.

6º, caput, da CF/88”), mas a matéria está longe de ser pacífica.