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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 137 - 160, Setembro/Dezembro. 2017
Como consequência, a situação dos que ingressam em uma união
estável convictos de que estão devidamente amparados pela ordem jurídica e
descobrem, no momento do falecimento de seu companheiro, que possuem
menos direitos do que teriam caso tivessem escolhido se casar, deixaria de
ser reputada uma sanção indireta pela opção pela vida na informalidade,
passando a ser considerada constitucionalmente legítima por representar a
consequência de uma suposta (ainda que, na maior parte das vezes, inexis-
tente) escolha individual, fruto de sua autonomia
21
.
Olhando a questão sob outro ângulo, percebido com perspicácia pelo
Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto, vincular determinados regimes su-
cessórios a modelos familiares específicos pode significar, em verdade, um cerce-
amento da liberdade do casal, uma vez que deverá ser adotado obrigatoriamente
o tipo de constituição familiar que possui o regime de sucessão desejado
22
:
Não há que se falar aqui que a diferença de regimes sucessórios
decorreria da própria autonomia da vontade, já que conferiria
aos indivíduos a possibilidade de escolher o sistema normativo
(casamento ou união estável) que melhor se ajusta aos projetos
de vida de cada um.
O que a dignidade como autonomia prote-
ge é a possibilidade de opção entre um e outro tipo de entidade
familiar, e não entre um e outro regime sucessório
. Pensar que
a autonomia de vontade do indivíduo referente à decisão de
casar ou não casar se resume à escolha do regime sucessório é
amesquinhar o instituto e, de forma geral, a ideia de vínculos
afetivos e de solidariedade. É pensar de forma anacrônica e
ralismo-burguês. O ser humano, nessa perspectiva, continua a ser concebido como um fim em si mesmo, na linha de Kant.
Mas não se trata mais de uma abstração racional, valiosa porque ‘tem a lei moral dentro de si’, como queria Kant, mas
sim de um indivíduo concreto, imerso num determinado universo material e simbólico, partícipe de uma teia de relações
intersubjetivas que compõem a sua identidade. Uma pessoa real, que usa a razão e faz escolhas, mas que também sente
fome, fica doente, cultiva amizades, ama, sofre e precisa do outro, e que não deixa de ser digna por isso” (SARMENTO,
Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum. 2016. p. 50-51).
21 Como parece decorrer da lição de Rodrigo da Cunha Pereira: “Em outras palavras, (...) o sujeito é responsável por
suas escolhas. Optar por constituir família pelo casamento tem vantagens e desvantagens, assim como optar pela união
estável traz vantagens e desvantagens. O que o Direito deve garantir é a liberdade de as pessoas escolherem esta ou aquela
forma de constituir família. Se não houver diferença entre estas duas formas, não haverá liberdade de escolha” (PEREI-
RA, Rodrigo da Cunha. “União Estável”. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de Direito das Famílias. Belo
Horizonte: IBDFAM. 2015. p. 233).
22 Em sentido semelhante, o magistério de Luiz Edson Fachin: “Quanto aos valores constitucionalmente consagrados,
verifica-se que a discriminação estabelecida no art. 1.790 do CC/2002 viola os princípios da dignidade da pessoa humana e
da igualdade (ou isonomia), um vez que, por meio da diferenciação entre os efeitos sucessórios da união estável e do casa-
mento, dá menos (ou mais) condições (reais) de desenvolvimento a determinada pessoa tão somente pela
escolha da entidade
familiar, que deveria ser livre e desvinculada de quaisquer aspectos patrimoniais
” (FACHIN, Luiz Edson. “Inconstitucionalidade do
Art. 1.790 do Código Civil Brasileiro”. In: FACHIN, Luiz Edson. Soluções Práticas de Direito Civil: pareceres, vol. II. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 2011. p. 55. Grifou-se).