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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 137 - 160, Setembro/Dezembro. 2017
psicológica e individualista, salvaguardada contra indevidas ingerências es-
tatais, a noção de autonomia privada hoje remete ao poder conferido pela
ordem jurídica às pessoas para regularem suas relações patrimoniais e exis-
tenciais, sempre em conformidade com os demais valores contemplados no
ordenamento
12
. Desse modo, fica marcada de forma nítida a modificação
– não apenas quantitativa, mas também qualitativa – do espaço de liberdade
no âmbito das relações interprivadas
13
.
Embora a proclamação dessas mudanças já seja amplamente difundi-
da na doutrina pátria, a aplicação de tais ideias a situações concretas muitas
vezes encontra uma forte barreira na visão, ainda arraigada na cultura ju-
rídica brasileira, do Direito Civil como um campo normativo que teria na
liberdade seu valor maior.
Daí a necessidade de contínua vigilância sobre a invocação de argumen-
tos associados à liberdade (ou à autonomia), de modo a garantir que a liberda-
de invocada seja aquela em sintonia com os demais valores fundamentais do
ordenamento jurídico, e não o puro e simples arbítrio do sujeito, sob pena de
relegar ao campo da retórica o valioso esforço empreendido nas últimas dé-
cadas para a construção de um Direito Civil comprometido não apenas com
uma sociedade livre, mas também justa e solidária (art. 3ª, I, da CR).
4. A QUESTÃO DA LIBERDADE QUANTO AO REGIME JURÍDI-
CO SUCESSÓRIO NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL
No caso em exame, o argumento suscitado pode ser assim sintetizado:
a coexistência de regimes distintos de sucessão para as famílias fundadas no
casamento e na união estável privilegia a autonomia do casal de optar pelo
modelo familiar cujo regime jurídico sucessório melhor lhe convier.
É preciso desde já consignar que não há nenhuma inverdade na
afirmação. Com efeito, a existência de modelos familiares com regras distintas
para a sucessão efetivamente permite que aqueles que pretendam formar
uma entidade familiar escolham o seu modelo tomando em consideração
o regime sucessório a ele atrelado. Saindo, porém, do plano das abstrações,
outras questões relevantes começam a emergir.
Observe-se, inicialmente, o fato de que a mera possibilidade de as
pessoas optarem entre os diversos arranjos familiares ponderando as regras
12 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 63-72.
13 Trata-se de questão de extrema relevância, mas que não comporta aprofundamento nos estreitos limites deste trabalho.
Para uma análise mais detida da matéria, confira-se: BODIN DE MORAES, Maria Celina; CASTRO, Thamis Dalsenter
Viveiros de. “Autonomia e o Corpo de cada um”. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; GUEDES, Gisela
Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau (org.). Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 2015. p. 119-122.