

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017
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como estabelecer,
a priori
, qual valor que se reveste de maior peso, diante do
reconhecimento de que são relativos e de que a sociedade é plural
89
.
Desta forma, nos casos de gravidez decorrente de estupro, mesmo na
situação incontestável de vida do feto com expectativas absolutamente nor-
mais de desenvolvimento após o parto, a mulher não é obrigada a ter o filho,
dando-se primazia ao direito da gestante e aos impactos psicológicos de tal
situação. Sendo assim, faz-se necessário observar que, no caso do aborto
ético ou sentimental, o legislador brasileiro não deixou de levar em consi-
deração a mulher
90
, protegendo-a da obrigação de carregar, em seu ventre,
o fruto da concepção indesejada, resultado de prática violenta, à qual ela
foi constrangida, e também evitar que, caso o nascimento ocorra, seja ela
obrigada a conviver com um filho que vai lhe fazer se lembrar, por toda a
vida, da violação que sofreu
91
.
Assim, ainda que o estupro seja, para a sociedade em geral e para
o Direito em especial – já que é uma das excludentes de punibilidade do
aborto –, uma ação humana da maior violência contra a autonomia de von-
tade da mulher, uma aberração, uma hediondez, há que se reconhecer que
este não é a única causa de gestações indesejadas no Brasil. Sem grande es-
forço hermenêutico, percebe-se que, quando o legislador coloca o estupro
como causa de justificação para o aborto, que faz tornar-se lícita a conduta
que normalmente seria considerada ilícita, o faz fundado justamente no
interesse em preservar a dignidade da mulher, vítima da violência sexual.
Contudo, há que se conseguir separar da permissão para o aborto senti-
mental o instante da mais aterradora experiência sexual para a mulher e
reconhecer que a liberdade e a autonomia da mulher são anteriores à con-
cepção, seja ela fruto de uma relação consensual ou da ignomínia a que as
vítimas de estupro são brutalizadas e que a autorização para a interrução
voluntária da gravidez não pode estar condicionada a um ato masculino,
muito menos ao mais perverso dos atos.
No Brasil, há que se transcender ao machismo que impera em nossa
sociedade e, naturalmente, reverbera nas casas legislativas, que hoje se preocu-
pam em proteger a mulher apenas quando o abalo psíquico originou-se num
estupro e retira totalmente a autonomia e a liberdade sexual e reprodutiva da
89 Cf. RAWLS, John.
O liberalismo Político.
Trad. Dinah da Abreu Azevedo, São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 281 a 291
90 Cf. PRADO, Luiz Regis.
Curso de direito penal brasileiro.
Vol. 2. Parte Especial, 7.ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 119.
91 Cf. ADPF 54 DF, Op. cit. Voto Min. Gilmar Mendes.