Background Image
Previous Page  32 / 338 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 32 / 338 Next Page
Page Background

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017

32

como estabelecer,

a priori

, qual valor que se reveste de maior peso, diante do

reconhecimento de que são relativos e de que a sociedade é plural

89

.

Desta forma, nos casos de gravidez decorrente de estupro, mesmo na

situação incontestável de vida do feto com expectativas absolutamente nor-

mais de desenvolvimento após o parto, a mulher não é obrigada a ter o filho,

dando-se primazia ao direito da gestante e aos impactos psicológicos de tal

situação. Sendo assim, faz-se necessário observar que, no caso do aborto

ético ou sentimental, o legislador brasileiro não deixou de levar em consi-

deração a mulher

90

, protegendo-a da obrigação de carregar, em seu ventre,

o fruto da concepção indesejada, resultado de prática violenta, à qual ela

foi constrangida, e também evitar que, caso o nascimento ocorra, seja ela

obrigada a conviver com um filho que vai lhe fazer se lembrar, por toda a

vida, da violação que sofreu

91

.

Assim, ainda que o estupro seja, para a sociedade em geral e para

o Direito em especial – já que é uma das excludentes de punibilidade do

aborto –, uma ação humana da maior violência contra a autonomia de von-

tade da mulher, uma aberração, uma hediondez, há que se reconhecer que

este não é a única causa de gestações indesejadas no Brasil. Sem grande es-

forço hermenêutico, percebe-se que, quando o legislador coloca o estupro

como causa de justificação para o aborto, que faz tornar-se lícita a conduta

que normalmente seria considerada ilícita, o faz fundado justamente no

interesse em preservar a dignidade da mulher, vítima da violência sexual.

Contudo, há que se conseguir separar da permissão para o aborto senti-

mental o instante da mais aterradora experiência sexual para a mulher e

reconhecer que a liberdade e a autonomia da mulher são anteriores à con-

cepção, seja ela fruto de uma relação consensual ou da ignomínia a que as

vítimas de estupro são brutalizadas e que a autorização para a interrução

voluntária da gravidez não pode estar condicionada a um ato masculino,

muito menos ao mais perverso dos atos.

No Brasil, há que se transcender ao machismo que impera em nossa

sociedade e, naturalmente, reverbera nas casas legislativas, que hoje se preocu-

pam em proteger a mulher apenas quando o abalo psíquico originou-se num

estupro e retira totalmente a autonomia e a liberdade sexual e reprodutiva da

89 Cf. RAWLS, John.

O liberalismo Político.

Trad. Dinah da Abreu Azevedo, São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 281 a 291

90 Cf. PRADO, Luiz Regis.

Curso de direito penal brasileiro.

Vol. 2. Parte Especial, 7.ed., São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2008, p. 119.

91 Cf. ADPF 54 DF, Op. cit. Voto Min. Gilmar Mendes.