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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017
sua gravidez e que negar essa escolha seria uma manifesta restrição imposta
pelo Estado aos direitos das mulheres
85
.
Quando se considera cada pessoa humana como um agente moral do-
tado de razão, capaz de traçar seus planos de vida e escolher o que é bom ou
ruim para si, e que,
a priori
, deve ter liberdade para guiar-se de acordo com
sua vontade
86
, faz-se necessário questionar se o Estado e a sociedade não es-
tariam se intrometendo no direito à integridade corporal da mulher quando
tomam decisões sobre seu corpo e obrigam-na a levar adiante uma gestação
contra sua vontade, o que, por si só, pode comprometer sua saúde psíquica.
Além disso, não nos parece aceitável o silêncio do legislador penal
brasileiro sobre a autonomia reprodutiva da mulher na legislação do aborto,
pois desde o século passado a legislação sobre o aborto baseia suas regras e
sanções no universo masculino, fundamentando a existência de uma dupla
moral em que a condição das mulheres nunca entrou nas agendas políticas
por não serem consideradas relevantes. Na verdade, boa parte da resistência
à descriminalização da IVG se deve ao fato de as propostas pretenderem co-
locar os direitos reprodutivos, de saúde e o próprio corpo da mulher à frente
do direito à vida do feto e do direito de pai à prole
87
.
Nesse mesmo sentido, importa dizer que, ainda que a vida do feto
dependente da mãe dentro do útero seja o bem jurídico protegido pela proi-
bição do aborto
88
e que a criminalização do aborto objetive proteger o feto
contra a gestante, faz-se necessário lembrar que o ordenamento não protege
o feto em todas as hipóteses e que estupro é causa de excludente de ilicitude
do crime de aborto (art. 128, II, do Código Penal), mesmo que o feto seja
plenamente viável. Ou seja, no caso de estupro, não há interesse em proteger
o feto contra a gestante. Ficando evidente que, para o Direito Penal, a vida
não é, em hipótese alguma, um valor único e absoluto mesmo porque os
sistemas ocidentais não admitem valores absolutos e também porque não há
85 Ainda, há que se considerar que, se o direito à privacidade envolve o poder de excluir intervenções heterônomas sobre
o corpo do seu titular, não se pode conceber uma intrusão tão intensa e grave sobre o corpo de alguém, como a imposição
à gestante de que mantenha uma gravidez, por nove meses, contra sua vontade? Dworkin chama de “escravização parcial”
ou “privação de liberdade” a obrigação que é imposta às mulheres pela sociedade e pela legislação, forçando-as a carregar
fetos indesejados, retirando-lhes o controle de seus próprios corpos para que cumpram objetivos que lhe são estranhos .
Esta espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, a que as mulheres são submetidas, retira-lhes o mínimo essencial
de autodeterminação e liberdade, assemelhando-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa
ou dela exigido. Cf.
Dworkin Freedom’s Law:
the Moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard
University Press, 1996 , p. 98.
86 Cf. NINO, Carlos Santiago, Op. Cit. 1989.
87 Cf. DUARTE, Alicia Elena Pérez y Noroña. El Aborto – una lectura de derecho comparado”,
Ciências
, México, n.
27, julho 92, 56-57
88 Cf. HUNGRIA, Nelson.
Comentários ao código penal
. Vol. 5, 4. ed, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 267-317