

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017
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de mulheres oriundas, sobretudo, dos extratos sociais mais baixos, a recorrer
a procedimentos clandestinos e perigosos, realizados sem as mínimas condi-
ções de segurança e higiene
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e, ainda que o número de processos instaurados
e de condenções proferidas pela prática do crime seja ínfimo, a interpretação
da norma penal brasileira conduz a gestante que hoje opta pela interrupção
da gestação à condição de autora de crime, servindo muito mais à estigmati-
zação, do que a salvar vida de fetos.
O distanciamento entre a legislação brasileira em vigor e as práti-
cas sociais é um fenômeno identificado por diversas pesquisas realizadas
no país e relatado por profissionais da área que, diariamente, atendem
mulheres que procuram o sistema público de saúde por complicações re-
lacionadas ao aborto. O descompasso entre lei e prática cria um problema
objetivo de saúde no Brasil: o aborto é realizado com grande frequência,
mas sob condições de risco, e o tratamento das complicações é protelado
ao máximo, por receio da punição. O atendimento tardio é menos eficaz,
mais caro e menos capaz de evitar sequelas do que ocorreria caso o medo
da punição não fosse uma barreira para a busca de assistência. Na prática,
efetivamente, o que a legislação atual faz é dificultar o funcionamento das
políticas de saúde no Brasil
10
.
Das pesquisas realizadas até hoje e dos relatos coletados, depreende-
-se que o aborto é uma prática comum entre as mulheres, cujos saberes
são compartilhados e mantidos como uma cultura reprodutiva feminina e
sigilosa. Indiferentemente à lei penal, pelos mais variados motivos, as mu-
lheres abortam: porque são muito pobres e não têm condições de arcar com
uma gravidez; porque precisam trabalhar, e o mercado de trabalho rejeita
mulheres grávidas
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; porque sofrem violência doméstica e não querem expor
mais um filho à violência e/ou porque a gravidez as manteria presas a um
relacionamento abusivo
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; devido à cobertura insuficiente de medidas anti-
9 Cf REDE FEMINISTA DE SAÚDE.
Dossiê Aborto:
Mortes Previsíveis e Evitáveis. Belo Horizonte: Rede Feminista
de Saúde, 2005. p.23
10 Cf. DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. “Os autores respondem”,
Ciência saúde coletiva
, Rio de Janeiro , v.
17, n. 7, p. 1687-1688, jul. 2012 . Disponível em <
.http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000700006>. Acesso
em 20 abr. 2016.
11 Nesse sentido, “o maior desafio do feminismo e dos estudos de gênero parece ser o de retomar a luta em duas frentes:
o da igualdade entre os sexos no mercado de trabalho e a da proteção à trabalhadora na reprodução”. Cf. BRUSCHINI,
Cristina. Trabalho feminino: trajetória de um tema, perspectiva para o futuro.
Estudos Feministas
, Rio de Janeiro, v. 2,
n. 3, 1994, (pp. 17-32), p. 29.
12 Estudos recentes mostram que mulheres que procuram por aborto têm sete vezes mais chances de ter experimentado
violência doméstica. Cf. ROBERTS et al.: Risk of violence from the man involved in the pregnancy after receiving or
being denied an abortion. BMC Medicine. 2014. 12:144. Disponível em
<http://bmcmedicine.biomedcentral.com/arti-