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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 78, p. 9 - 38, Janeiro/Abril 2017
por profundas, e até passionais, divergências que, longe de se limitarem aos
argumentos jurídicos, morais e/ou de saúde pública, envolvem, principalmen-
te, questões religiosas. No Brasil, não é diferente. Tendo o Código Penal crimi-
nalizado o aborto nos seus arts. 124 a 128, desde 1940 o debate legislativo do
tema pouco evoluiu, concentrando-se na ampliação da criminalização, sendo
que as raras propostas de redução das restrições a interrupção da gravidez apre-
sentadas até hoje, não encontraram eco no Parlamento brasileiro.
Ainda que a interrupção da gravidez só seja legalmente permitida
quando a gravidez significar risco para a vida da gestante, resultar de estu-
pro ou nos casos de gravidez de feto anencéfalo, não é o que se observa na
prática. Esse estudo parte da constatação empírica de que a criminalização
do aborto obriga centenas de milhares de mulheres, sobretudo as mais hu-
mildes, a recorrer a procedimentos clandestinos e perigosos realizados sem
as mínimas condições de segurança e higiene
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.
O aborto é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores problemas políti-
cos criminais da atualidade: segundo as estimativas mais comedidas, ascende
a 1 milhão o número de abortos clandestinos realizados todos os anos no
Brasil. As sequelas decorrentes destes procedimentos representam, hoje, a 5º
maior
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causa de mortalidade materna no país, ceifando, todo ano, centenas
de vidas de mulheres jovens, que poderiam e deveriam ser poupadas.
Ainda que a criminalização da interrupção da gravidez pretenda tutelar
a vida uterina, o número de processos instaurados e de condenções proferidas
pela prática do crime é ínfimo, evidenciando que a lei penal parece ter sido
subvertida e que a discussão desse tema converteu-se num espaço de mero
debate ético. Fará sentido, ainda assim, manter a incriminação do aborto
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? É
legítimo restringir o direito de a mulher dispor do próprio corpo punindo o
aborto? E, mais do que legítimo, será mesmo obrigatório punir (pelo menos
em alguns ou, até, em todos os casos) tal crime para tutelar a vida pré-natal?
A resposta a estas questões envolve, forçosamente, a consulta da Cons-
tituição para verificar se há colisão ou, ainda, se há conflito aparente entre
realizada pela legislação portuguesa e também pelo afã de diferenciar o ato de interromper voluntariamente a gravidez do
fato previsto nos arts. 124 a 128 do CPB.
2 Cf REDE Feminista de Saúde.
Dossiê Aborto:
Mortes Previsíveis e Evitáveis. Belo Horizonte: Rede Feminista de
Saúde, 2005. p.23
3 Cf. relatório elaborado pelo governo brasileiro para o evento “Pequim + 20”, que aconteceu na 59ª Comissão sobre o
Estatuto da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, em março de 2015, p. 27. Disponível em
<
http://www.onumulheres.org.br/pequim20/#>. Acesso em 26 abr. 2016
4 Cf. PEREIRA, Rui.
O Crime de Aborto e a Reforma Penal.
A.A.F.D.L, 1995, p.79.