

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 76, p. 157 - 164, out. - dez. 2016
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Considerando essa dimensão ambivalente da existência da contri-
buição dada pelo direito no processo de modernização das sociedades
ocidentais, torna-se pertinente questionar em que medida a enunciação
de liberdades públicas pela via do direito teria um potencial emancipador
ou, ao contrário, todo o impulso de universalização de garantias jurídicas
seria sorvido pela normalização vigilante dos modos de vida?
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a garantia de direi-
tos abre um campo de embates para sua própria realização concreta,
mobilizando novos atores e estratégias de lutas para efetivar cada con-
quista, também ele pode ser decisivo para forjar subjetividades à luz de
suas prescrições morais e princípios estreitos, reduzindo a diversidade de
modos possíveis de vida e de desejo em uma abstração e uma universa-
lização típicas da regulação jurídica. Ademais, por meio das promessas
de direitos, pode auxiliar a promover uma assimilação dos movimentos
sociais, despolitizando os conflitos e tornando-se, em verdade, um dispo-
sitivo de gestão das expectativas sem transformações mais profundas na
estrutura social.
No campo dos direitos de sexualidade, essa tensão entre reconhe-
cimento e colonização ou, para radicalizar a oposição, entre libertação e
opressão parece atingir um ponto privilegiado para análise. Por essa ra-
zão, sempre repousa um juízo de valor ambíguo por trás dessa figura da
regulação jurídica, que fascina e que preocupa aqueles que buscam uma
política radical da sexualidade, tanto do ponto de vista intelectual quanto
do militante. Normalmente, estes reconhecem as conquistas, mas ressal-
tam as limitações também dessa via de encaminhamento dos conflitos.
Isso porque o sistema jurídico constitui um suporte fundamental
de estabilização identitária e, muitas vezes, de naturalização de desigual-
dades e diferenças nas sociedades ocidentais modernas. Ao enquadrar as
relações sociais e seus agentes a partir da categoria universal de sujeito
de direito, esse mecanismo opera uma redução da complexidade dessas
relações e promove, simultaneamente, tanto a imposição de identidades
como a atribuição de certas garantias jurídicas
7
. Além disso, hierarquiza
7 Essa relação entre o político e o jurídico é bem explorada por Butler, que afirma que “a construção política do
sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e exclusão, e essas operações políticas são efetivamente
ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento. O poder
jurídico ‘produz’ inevitavelmente o que alega meramente representar – função dual do poder: jurídica e produtiva”.
BUTLER, Judith.
Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, 2003, p. 19.