

R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 76, p. 157 - 164, out. - dez. 2016
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Curiosamente, os anos 50 e 60 do século passado marcam, apesar
do crescente autoritarismo pós-1964 e do controle moral nele embutido,
um intenso florescimento das artes e da sociabilidade homoeróticas no
Brasil. A repressão que se abateu sobre as práticas sexuais consideradas
dissidentes conviveu, em complexa relação, com a emergência de novas
formas de vida, como com a expressão social e cultural dos desejos e dos
afetos desses grupos “desviantes”.
Essa entrevista, feita nessa contexto, com Cassandra Rios revela
bem tal ambiguidade. Fugindo de falar expressamente sobre os temas
mais perigosos do ponto de vista da censura, a entrevistada não deixa de
dar suas opiniões como lésbica que vinha sofrendo pessoal e profissional-
mente com o conservadorismo alçado à política de Estado da ditadura.
Apesar de respostas mais longas e menos cifradas nas outras ques-
tões da entrevista, é interessante notar como Cassandra esquiva-se sobre
tal pergunta referente ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, um
tema bastante polêmico para a época em que predominava uma visão
religiosa sobre o matrimônio. E, de forma bem-humorada, ela não chegou
a se dizer abertamente favorável ou contrária. Antes, ela afirmou que “se-
ria engraçado”, diante da desorganização dos papeis tradicionais de gêne-
ro que decorreria provavelmente de uma união “entre iguais”, a grande
questão seria saber quem pagaria a pensão a quem depois da separação.
Afinal, em um mundo cindido no qual os homens deviam trabalhar e ocu-
par os lugares públicos e as mulheres deveriam cuidar do lar e manterem-
-se no âmbito doméstico, seria no mínimo intrigante saber quem deveria
ajudar na sobrevivência de quem após o fim do matrimônio.
Dando o desconto da ironia na resposta, é certo que ela tinha uma
opinião formada sobre esse assunto, que lhe dizia respeito diretamente
como homossexual. Inclusive, na prática, já havia muitos casais homosse-
xuais existentes de fato ainda que não de direito. No entanto, seu discurso
não carrega a perspectiva militante de defesa de um direito de igualdade
em relação aos heterossexuais. Por outro lado, tampouco sua fala reflete
a repulsa moral dominante que combatia qualquer forma de amor e de
união que não fosse entre um homem e uma mulher.
Essa resposta de Cassandra, em suma, é simbólica por ilustrar a difi-
culdade posta, na época da ditadura, para o reconhecimento legal e insti-
tucional de qualquer direito dos homossexuais, ainda que eles estivessem
vivendo seus encontros sexuais e afetivos às margens do ordenamento