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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 72, p. 191 - 202, jan. - mar. 2016

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A mulher não tem, portanto, disponibilidade sobre a ação. Por quê?

Porque na violência de gênero não existe apenas danos físicos e materiais

(corporais) em jogo. Por detrás dela reside uma cultura nefasta (que está

conduzindo ao extermínio de milhares de mulheres). A mulher, nesse caso

específico, não pode dizer “o corpo é meu e faço dele o que quero”.

Mesmo havendo “reconciliação” do casal, quer o STF que a ação

penal prossiga. Na prática, no entanto, muitos juízes colocam fim no pro-

cesso penal quando a mulher “desiste” da acusação. Qual o argumento?

“O corpo é dela e ela faz o que quer”.

O erro dessa construção é que ela coisifica o corpo humano, ou

seja, o toma como mera propriedade privada (ignorando a dignidade). A

origem dessa crença dualista (corpo é corpo, alma é alma) é tanto religio-

sa como laica (faz parte de alguns segmentos laicos). O seu risco consiste

na instrumentalização do corpo humano, na sua objetivização.

Eu, particularmente, entendo que a solução para o problema da

violência de gênero que não resulta em assassinato (homicídio) consu-

mado ou tentado seja a suspensão condicional do processo penal para a

entrada em campo de toda uma equipe multidisciplinar (prevista na Lei

Maria da Penha).

Mas as políticas públicas brasileiras (quase sempre atrasadas e vin-

gativas) preferem a cadeia a essa solução. O encarceramento (que não

resolve nenhum problema humano) é o substitutivo da perspectiva de

solução do conflito (tal como se passa no Canadá, por exemplo). Mas os

governos não fazem isso sem o apoio majoritário da população (que, sub-

jugada ao pensamento sacrificial, não pensa na solução do problema, sim,

no encarceramento exemplar tendencialmente sanguinário). E por aí se

adia a solução da questão (se é que a questão da violência tenha solução).

Em síntese, o corpo humano (por tudo quanto foi dito) não é con-

siderado pelo direito vigente como uma propriedade privada. Ninguém

pode tê-lo como propriedade particular, como se fosse mais um objeto do

mundo terráqueo.

Não se trata de um mero instrumento (sobretudo dos poderes eco-

nômicos e políticos). O corpo humano não é uma exterioridade autônoma

e independente da pessoa humana digna. A relação entre o “eu” (dotado

de dignidade humana) e o corpo é de identidade absoluta. Não é possível

desgrudar um do outro.