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R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 72, p. 191 - 202, jan. - mar. 2016

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Desde a construção do Estado moderno, em todas as épocas e em

todos os regimes, fica sempre a pergunta sobre qual corpo que a socieda-

de (de cada momento) necessita

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.

Diante de tanta interferência no nosso corpo, a tarefa mais urgente

consiste em nós nos apropriarmos dele. Sejamos todos nós os que man-

dam (ou mandamos) nos nossos corpos. Temos que nos emancipar de to-

dos aqueles que querem conduzir o nosso destino ou o destino do nosso

corpo. Isso significa liberdade. Liberdade frente a todas as ideologias de

submissão. Qual o problema? No afã de nos libertar, podemos estar nos

submetendo a um grande risco, qual seja, o de objetivizar o corpo, o de

coisificar o corpo.

Muitos de nós achamos que o corpo é uma

propriedade privada

.

Aqui temos que ter muito cuidado. Pode haver fraude na divisão entre o

corpo e a alma (o corpo é objeto, enquanto a alma é espírito). Os conquis-

tadores da América (extrativistas) para cá vieram para cuidar da alma dos

nativos e, ao mesmo tempo, massacravam seus corpos. Enfocavam os cor-

pos como algo externo à alma. A alma é para ser catequizada, enquanto o

corpo é para ser escravizado.

Um estupro não consiste apenas numa ofensa a um corpo (a uma

propriedade privada). Se o corpo fosse somente isso, a violação sexual

configuraria apenas o crime de danos (não o crime de estupro).

Por que as leis consideram o estupro um crime muito mais grave

que o crime de danos patrimoniais? Porque no estupro não se levam em

conta apenas os danos físicos, senão a pessoa inteira

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, sua dignidade,

sua liberdade, sua autonomia de escolher quando e com quem praticar

atos sexuais.

Por que a exploração sexual, a tortura, o trabalho escravo, a pedofi-

lia etc. são crimes muito mais graves que o de danos? Porque está em jogo

uma pessoa humana, uma dignidade humana, uma liberdade humana.

Na polêmica sobre se a ação penal no crime de lesão corporal leve

(no contexto da violência de gênero) é pública ou privada, todos sabemos

que o STF optou pela sua natureza pública (ADC 19 e ADI 4.424). Isso signi-

fica que o corpo da mulher não é (apenas) uma propriedade privada. Essa

ofensa envolve a dignidade da mulher assim como a pretensão de mudar

uma cultura enraizada no patriarcalismo.

5 Cf. ARTETA, Aurelio.

Tantos tontos tópicos.

4ª edição. Barcelona: Ariel, 2012, p. 42.

6 Cf. ARTETA, Aurelio.

Tantos tontos tópicos.

4ª edição. Barcelona: Ariel, 2012, p. 43.